16 de dezembro de 2022

Dissertação mestrado em Educação - continuação 3.4 Leitura da imagem no ensino da arte

 

A inclusão da imagem na prática educativa do professor de Arte faz parte da mudança conceitual do ensino da arte. Pode-se dizer que o trabalho com imagens na educação no Brasil foi retomado com a Proposta Triangular, pois se trata de um dos eixos desta. Segundo Célia Almeida (no prelo), Barbosa “[...] divulgou intensamente idéias e propostas metodológicas de autores estrangeiros que tratavam deste assunto [a leitura da imagem] — aliás, trouxe muitos deles para cursos e conferências”.

Durante várias décadas do século xx, a imagem artística ou mesmo outras imagens vinculadas com o mundo adulto estiveram ausentes das práticas educativas do ensino de arte, pois eram consideradas como não educativas; considerava-se que contaminavam a “purezaexpressiva[1] da criança. Permaneceu na escola apenas a imagem produzida pelo aluno. Se na modernidade “[...] a não-intervenção do professor e o rompimento com a imitação de modelos foram considerados como o mais profundo respeito à natureza da criança, da criatividade e da produção artística” (rossi, 2003, p. 16), no contexto pós-modernista se admite que a imagem não prejudica a educação estética; ao contrário, beneficia e é indispensável, a ponto de ter lugar privilegiado no processo educativo. Assim, incluir a imagem artística no trabalho educativo se tornou uma forma de ampliar o repertório cultural de alunos/as, antes restrito à produção pessoal e a sua imersão na cultura de massa.

Como o educador com formação acadêmica anterior à década de 1990 não foi preparado para orientar alunos na leitura de imagem, os novos cursos de licenciatura tentam se adequar à proposta pós-modernista, incluindo no currículo a leitura estética.[2] Além disso, a temática virou alvo de grande preocupação: foram publicados artigos e livros sobre o tema.[3] A Secretaria de Educação Fundamental do Ministério da Educação (sef/mec) lançou, em 1998, um programa de formação continuada com nome de “Parâmetros em ação”, dividido em módulos. Um desses módulos é destinado à gestão da sala de aula e aborda aspectos da organização do trabalho do professor, oferecendo até sugestões de como encaminhar a leitura de imagens. No entanto, esses manuais não chegaram ao professor de Arte em Uberaba: a prática da leitura e apreciação de obras acontece de forma empírica e não há registro de cursos de atualização que enfoquem essa temática.

Nesta investigação, interessei-me em saber que tipo de imagem estudantes-professores/as levam para sala de aula e como conduzem a leitura. Tininha e Raquel trabalham com imagens de obras de artistas brasileiros (a maioria); Clésia leva uma grande diversidade de reprodução de obras de artistas (consagrados ou não, do código europeu ou não). Mizac é o único que afirma usar, também, imagens do cotidiano ou mesmo da cultura de massa (embalagens de leite, panfletos de propaganda eleitoral, dentre outros) — atitude que tem respaldo em Barbosa (2002b) para ela, a arte-educação pós-moderna deve se comprometer com a diversidade cultural; é importante dar atenção à diversidade cultural e “[...] não somente aos códigos europeus e norte-americanos brancos. [...] É necessário que a escola forneça um conhecimento sobre a cultura local, a cultura de vários grupos que caracterizam a nação e a cultura de outras nações” (barbosa, 2002b, p. 19).

Essa autora constata que quase sempre apenas o nível erudito é aceito na escola; raramente as culturas de classes sociais economicamente desamparadas são exploradas em sala de aula (barbosa, 2002b). A exceção ocorre em agosto, quando se comemora o folclore. Nessa época, a cultura popular ganha status na escola. No caso do/das estudantes-professores/as, destaco Raquel, cujo portfolio contém um trabalho que explora a produção de uma artista brasileira ainda pouco divulgada na mídia: Mônica Sartori; também ressalto Mizac, que argumenta em favor da escolha de artistas não consagrados:

Eu gosto de sair destes artistas-padrões, tanto nacionais quanto os de fora... A educação é uma indústria. Eles investem. É Tarsila... Antigamente ninguém falava [nela]. Nada contra estes artistas, Portinari [por exemplo], famosos, internacionais, mas existe uma galera enorme de artistas [muito bons], às vezes até na própria cidade.

                  figura 23. Reprodução de página do portfolio de Raquel

Fonte: acervo de Luciano Carvalho.

Barbosa (1996) trata de alguns procedimentos empregados na leitura de obras de arte — métodos comparativo (como o classifica a proposta de Edmund Feldman) e multipropósito (de Robert Saunders) —, ela assevera que a metodologia o professor escolhe:

A metodologia de ensino da arte usada no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo integra a História da Arte, o fazer artístico e a leitura da obra de arte. Essa leitura envolve análise crítica da materialidade da obra e princípios estéticos ou semiológicos ou gestálticos ou iconográficos. A metodologia de análise é de escolha do professor. O importante é que obras de arte sejam analisadas para que se aprenda a ler a imagem e avaliá-la. Esta leitura é enriquecida pela informação histórica e ambas partem ou desembocam no fazer artístico. (barbosa, 1996, p. 37).

Nesse sentido, foi difícil saber dos/das estudantes-professores/as como encaminham a leitura de imagens. Tive de ler nas entrelinhas de suas falas ou mesmo quando me mostravam fotos.

A orientação para Raquel desenvolver o processo de leitura com seus alunos veio do que depreendeu do material da rede Arte na Escola (rede arte na escola/arte br). Diz ela:

 [...] a primeira pergunta é: “O que você nesta imagem?” Depois: “O que a imagem mostra para você?”. Essas perguntas parecem a mesma, não é? Mas elas trazem respostas diferentes. Interessante isso! No arte br, eu fiquei impressionada de ver isso. O que você está vendo nesta imagem é tudo, tudodesde elementos da composição formal, até o próprio tema, estilo. E depois o que esta imagem mostra para você é o que quer mostrar para você. , pronto. Muda. Muda o referencial. Quer mostrar uma coisa bem alegre, a tristeza; quer falar que existe muito menino abandonado na rua.

Lançado em 2003, o material arte br foi elaborado por professores e especialistas em arte-educação[1] a fim de subsidiarem os professores que lidam com a leitura de imagem em sala de aula usando obras de artistas brasileiros. O material, também, pretende integrar o projeto de educação continuada do Instituto Arte na Escola, que resulta da institucionalização do projeto Arte na Escola, criado em 1989, pela Fundação Iochpe. Nesse material, a leitura de imagem se fundamenta na teoria semiótica greimasiana,[2] que entende a arte como linguagem e o objeto artístico como texto visual. Conforme instruções do material, a leitura visual deve obedecer à seguinte seqüência:

O olho, o que ? O olho, o que percebe? De olho no artista, no Brasil e no mundo. O olho que conta histórias. O olho que pensa, a mão que faz, o corpo que inventa. Provocando olhares. O olhar que dialoga. De olho no museu. O olho que refaz o percurso. Linha de vida, tempo da obra. Chave de palavras. O olhar que descobre. (arte br, 2003, s. p.).

 

figura 24. Reprodução de página do portfolio de Raquel

Fonte: acervo de Luciano Carvalho.

Raquel afirma que a leitura de imagens importa porque estimula o aluno a ter visão ampla: “Eles falam assim: ‘Vi o sol. Olhe lá um brilhinho! Nossa! Eu vi muita cor laranja’. Outro fala assim: ‘Eu vi muitas linhas retas, redondas. Eu vi que não entendi nada desta imagem!’”.

O trabalho de Mizac com imagens inclui, a princípio, a opinião dos alunos sobre a obra: “gostei; não gostei; não gostei porque...; gostou por que?; achei estranho, bizarro; vi algo parecido”. Ele afirma que, depois, trabalha muito com leitura de imagem e cita que, quando mostrou aos alunos os artistas de Goiás Siron Franco e Antônio Poteiro, desenvolveu um exercício de leitura de imagens em forma de prova. Em sua descrição, identifico passos da leitura de imagem propostos por Edmund Burke Feldman:[1] descrição, análise, interpretação e julgamento. Mizac, entretanto, troca o último passo proposto por Feldman de maneira mais criativa e com sua marca:

[Utilizo] aquele processo, analisando, descrevendo interpretando e finalizando. [...] A prova estava perfeita. Para quê eu vou mexer nesta prova? Se ela está perfeita! A última pergunta era para criar um slogan ou uma peça publicitária onde você colocaria esta imagem e por quê. [Foi] a pergunta mais difícil porque envolveu o pensar. Foi valiosa, porque surgiram coisas interessantes em relação à leitura. (Grifo meu).

A leitura de imagens permite construir conhecimentos visuais. Não se pode esquecer: o olhar de cada leitor terá influencias de suas experiências, lembranças, fantasias e interpretações. Não um modo verdadeiro, tampouco uma maneira linear, única de ler.

O nosso olhar não é ingênuo: ele está comprometido com nosso passado, com nossas experiências, com nossa época e lugar, com nossos referenciais. Não há o dado absoluto e não se pode ter uma única visão, uma leitura, mas se deseja lançar múltiplos olhares sobre um mesmo objeto. (pillar, 2003, p. 16).

A fala de Tininha revela uma proposta de leitura visual distinta:

[...] antes de mostrar as imagens, eu falo um pouco da pessoa que fez a imagem, mas em forma de história, para eles entenderem. Eu começo a contar história e começo a falar das cores que o artista usa, o jeito que ele trabalha, [e depois é que] mostro a figura a eles.

Ela argumenta que assim fica “mais familiar”; afirma que, ao dirigir o olhar dos alunos para uma narrativa pessoal, quando ela lhes mostra a imagem, “[...] já olham de uma outra forma” e acreditam que, se “eu não contar uma história antes, eles não vão entender”.

Cabem questionamentos: não estará Tininha lendo pelo aluno? Não estará dando sua interpretação da obra para o aluno? Será que sua formação inicial em História não a conduziu a tal prática? A propósito da importância do ato de ler, recorro a Freire (1989), para quem o professor não ensina “o que ler”, pois não há uma leitura correta; há, sim, sentidos que o leitor constrói conforme seu conhecimento de mundo e seus interesses no momento. Isso porque ler pressupõe percepção, interpretação pessoal; é um ato de conhecimento e, sobretudo, criador.

Como ler, o ato de ver é processual: olha-se para depois se ver. Não se vê apenas a parte física de um objeto a ser focalizado pelos olhos; vêem-se, também, suas relações com o sistema simbólico, para se lhe atribuírem sentidos, pois

A leitura de obra de arte envolve o questionamento, a busca, a descoberta e o despertar da capacidade crítica dos alunos. As interpretações oriundas desse processo de leitura, relacionando sujeito/obra/contexto, não são passíveis da redução certo–errado. [...] É importante ressaltar que o objeto de interpretação é a obra, e não o artista, não se justificando processos adivinhatórios, na tentativa de descobrir as intenções do artista. (rizzi, 2002, p. 67).

Com efeito, levar imagens para a sala de aula e manter idéias totalizantes e homogeneizadoras das grandes metanarrativas é o grande equívoco dos professores (almeida, no prelo). Com isso, ante a dificuldade em escutar a obra abertamente, sem pré-conceitos, e assim subverter o que está dado como certo, não permitem a alunos e alunas fazerem sua escuta, para que todos (docente e discentes) com suas vozes ajudem a construir os sentidos da obra coletivamente.



[1] Passos propostos por Feldman: descrição — sugere-se fazer lista detalhada de objetos e formas presentes na obra, descrevendo tudo, para ajudar o expectador a observar a obra mais longamente e descobrir coisas ou detalhes não captados antes; análiseobservação do procedimento do que vemos na obra; estuda-se a relação de tamanho e de localização das formas no espaço, a relação entre cor e textura: os elementos estéticos da obras; interpretaçãobaseado nos elementos descritos e analisados da obra, o observador vai significar o trabalho de arte: usam-se palavras para descrever idéias que explicam as sensações e os sentimentos que se têm diante do objeto de arte; julgamento — decide-se sobre o valor estético da obra: é o momento de explicitar as razões por que o trabalho em estudo é bom ou ruim (pedrosa , 2002).


 



[1] Ana Amélia Bueno Buoro, Beth Kok, Bia Costa, Eliana Braga Aloia Atihé, Lucimar Bello Pereira Frange e Moema Martins Rebouças.

[2] Teoria da significação, a semiótica greimasiana enfoca a construção do sentido em diversos textos e no mundo como texto. A significação é estudada à luz da fenomenologia, da lingüística e da antropologia





[1] O termo é empregado por artistas românticos, contrários a toda regra imposta pela tradição clássica.

[2] No caso do curso de Educação Artística/Artes Visuais do cesube, o estudo da leitura de imagens acontece nas disciplinas Estudo da forma e da composição e Metodologia do ensino de artes visuais, respectivamente, no segundo e terceiro anos do curso.

[3] Ver, por exemplo, Pillar (2003) e Rossi (2003).

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