21 de junho de 2022

2.3 A Proposta Triangular para o ensino de arte

 2.3  A Proposta Triangular para o ensino de arte

 

Originalmente denominada Metodologia Triangular para o ensino de arte, a Proposta Triangular foi sistematizada por Barbosa, entre 1987 e 1993,[1] e testada no Museu de Arte Contemporânea (mac) da usp, por uma equipe de doze arte-educadores. A equipe explorava a leitura de obras de arte do acervo do museu com crianças, adolescentes e adultos sem conhecimentos de arte. Essa experimentação possibilitou sistematizar a metodologia, apresentada como tal em 1991, na obra A imagem no ensino da arte (barbosa, 1996).

Segundo Barbosa (1998), a origem dessa proposta deriva de uma dupla triangulação: de um lado, três vertentes do ensino e da aprendizagem: fazer artístico, leitura da imagem (obra de arte) e contextualização (história da arte); de outro, a tríplice influência que a originou: os movimentos das Escuelas al Aire Libre do México, os Critical Studies (estudos críticos) da Inglaterra e a proposta da Disciplined-based Art Education (dbae), dos eua. Segundo diz Barbosa (1998), para elaborar a Proposta Triangular, ela recorreu à idéia de antropofagia[2] cultural, após analisar as diferentes propostas internacionais.

Experiência de ensino de arte surgida em 1913, as Escuelas pretendiam recuperar a arte genuinamente mexicana, constituindo uma gramática visual própria de seu povo pelo estímulo à apreciação da arte local e à expressão individual. A proposta pedagógica associava a liberdade de expressão com algum tipo de conhecimento sistematizado, “[...] sugestões de exercícios a serem feitos a partir da sistematização de formas e linhas dominantes na arte e no artesanato mexicano” (barbosa, 2003b, p. 102). Usava-se o livro didático de Adolf Best Maugard, que pretendia despertar na juventude o senso de apreciação da arte mexicana e, assim, recuperar o orgulho nacional. Além da educação formal e estética, os objetivos incluíam a conscientização social e política dos estudantes.

Até a revolução de 1910, a cultura mexicana, a arte e o artesanato eram desprezados por todas as classes sociais e apenas o que era produzido na Europa despertava a admiração dos mexicanos. Por outro lado, o livro de Best Maugard e as Escuelas al Aire Libre pretendiam educar o povo, especialmente o espoliado indígena. (barbosa, 2003b, p. 104).

As Escuelas conseguiram se multiplicar, e, no auge da realização de seu projeto, 70% dos alunos que as freqüentavam eram de origem indígena. No entanto, em 1932, elas passaram a ser controladas pelo Instituto de Belas Artes — isto é, passaram a se submeter ao currículo vigente e perderam o caráter experimental que lhes deu sucesso em anos anteriores.

Outra vertente que inspirou Barbosa foram os Critical Studies, que defenderam a integração do museu com a escola e a apreciação de obras de arte:

Estudos Críticos é a esfera do ensino da arte que transforma os trabalhos de arte em percepção precisa e não casual, analisando sua presença estética, seus processos formativos, suas causas espirituais, sociais, econômicas e políticas e seus efeitos culturais. [...] Se as obras de arte são apenas submetidas a uma análise ingênua, elas podem ser bem conhecidas como combinações de forma, cor, texturas e massa, mas pouco entendidas em relação aos motivos religiosos, históricos, sociais, políticos, econômicos e outros que as originaram. (thistlewood, 1997, p. 143).

Os Critical Studies reconhecem o potencial dos museus de arte como condensadores culturais e defendem a idéia de que a visita ao acervo de um museu deva ser acompanhada por um profissional capaz de instruir o visitante. Segundo Thistlewood, esses estudos

Devem promover a completa compreensão da origem simbólica, tratando as raízes dos conceitos visuais e formais, comuns às suas origens nos movimentos e obras de arte. Uma compreensão crítica de como os conceitos visuais e formais aparecem na arte [...] significa estar questionando e trazendo arte e museus de arte da periferia para o foco da relevância social. (1997, p. 155)

A terceira vertente teórica que inspirou Barbosa fundamentou o programa de ensino de arte denominado dbae (arte-educação entendida como disciplina), elaborado pelos pesquisadores Elliot Eisner, Brent Wilson, Ralph Smith e Marjorie Wilson, dentre outros, e patrocinada pelo Getty Center for Education in the Arts, no fim da década de 1970. Esse programa resultou de uma pesquisa encomendada pelo Getty Center, que apontou uma grande queda na qualidade do ensino de arte nas escolas dos eua, “[...] seguida por uma perda de status perante as outras áreas de conhecimento contempladas no currículo escolar” (rizzi, 1999, p. 40). O dbae pressupõe que, para o ensino de arte ser eficiente e de qualidade, é necessária a interação de quatro campos de conhecimento distintos: produção artísticauso de meios materiais pela criança para transmitir idéias, imagens e sentimentos; história da arte compreensão das relações entre arte e conceitos estéticos das diferentes épocas; estética reflexão sobre a qualidade das obras de arte e do mundo visual, bem como a filosofia da arte; e crítica[3] julgamentos sobre a expressão artística através do ato de ver e descrever o mundo visual.

Essas quatro disciplinas alicerçam a idéia de que um bom programa de arte na escola deve partir da convicção de que a arte não é apenas ornamento, e sim uma parte do patrimônio cultural, por isso merece a mesma atenção que outras disciplinas no currículo escolar. Na sua fundamentação, o dbae questiona os métodos de ensinar arte centrados na manipulação de materiais e no ensino e na aprendizagem de técnicas artísticas. Seus idealizadores afirmam que o aprendizado artístico requer mais que conhecimentos e habilidades para se usarem materiais de arte e que o professor deve assumir papel ativo e exigente: em vez de oferecer aos alunos os materiais artísticos, deve apoiar e orientar a produção artística dos materiais.

Partindo das discussões educacionais sobre experiência, sobretudo as fundamentadas nas afirmações do pensador John Dewey (primeira metade do século xx), os defensores do dbae acreditam que o professor de arte deve incentivar a realização de experiências úteis à reflexão das crianças acerca da arte — objetivo central.

Para a experiência ter valor educacional, o indivíduo deve experimentar desenvolvendo a habilidade de lidar inteligentemente com problemas que ele inevitavelmente encontrará no mundo. Para os arte-educadores, são as artes, e as artes visuais em particular, que fornecerão isto. Programas de ensino de arte que são significativos para a criança capacitam-na a pensar mais inteligentemente sobre a arte e suas diversas manifestações no mundo. [...] Existem quatro coisas principais que as pessoas fazem com a arte. Elas vêem arte. Elas entendem o lugar da arte na cultura, através dos tempos. Elas fazem julgamentos sobre suas qualidades. Elas fazem arte. (eisner, 1997, p. 82).

Arte como disciplina a ser incluída no currículo para enriquecer a cultura escolar. Eis o pensamento de Eisner; para ele, “a arte não deve ser auxiliar nos estudos sociais ou das línguas. [...] [é preciso] um isolamento cada vez maior das artes, a fim de proteger suas especificidades de disciplinas consideradas mais importantes” (eisner, 1997, p. 84). O dbae almeja contribuir para o desenvolvimento e as experiências humanas; eis por que o aluno é convidando a criar, improvisar, compor, executar, interpretar, discutir, escrever e pensar, relatando e avaliando trabalhos de arte.

Embora sejam estas as três experiências de ensino de arte a influência e inspiração para Barbosa elaborar sua Proposta Triangular, esta tem sido interpretada como adaptação, simples tradução da proposta do dbae nos eua. Em várias publicações, autores distintos[4] reconhecem na Proposta Triangular uma fundamentação/adaptação do dbae:

Vamos encontrar [...] no Brasil a evolução das preocupações encontradas em todo esse processo de questionamento sobre o ensino de arte, a partir das propostas do Getty Center sob o nome de Metodologia Triangular do Ensino de Arte. A proposta é da Profª Drª Anna Mae Barbosa que optou por fundir a Crítica e a Estética no que ela denominou Leitura da Obra de Arte. (são paulo, 1992, p. 10).

Preocupada com interpretações equivocadas de sua proposta, Barbosa procura dissipá-las em Tópicos utópicos (1998). Argumenta ela:

A “Proposta Triangular” não foi adaptada do dbae, mas sistematizada a partir das condições estéticas e culturais da pós-modernidade brasileira. A “Proposta Triangular” e o dbae são interpretações diferentes, no máximo paralelas. [...] a Proposta Triangular se opõe ao dbae, porque este disciplinariza os componentes da aprendizagem da arte, separando-os em fazer artístico, crítica de arte, estética e História da Arte, revelando, inclusive, um viés modernista na defesa implícita de um currículo desenhado por disciplinas. (barbosa, 1998, p. 37).

Se a Proposta Triangular tem influências das propostas relatadas por Barbosa, também o tem do pensamento pedagógico do educador brasileiro Paulo Freire, conforme relatou essa autora (barbosa, 2006a). Barbosa (1998) afirma que construiu suas concepções teórico-práticas de educação durante a carreira de arte-educadora; noutras palavras, sua visão de homem e de mundo e o discurso pedagógico são influenciados pela conjuntura sociopolítico-cultural-econômica. As palavras da educadora Gerda Margit Schutz Foerste reiteram essa afirmação:

Sua produção [...] não pode ser compreendida como resultado de um processo lógico e linear, [...] são resultantes de uma intrincada relação de inúmeros fatores, desde a ação dos mais diversos determinantes sociais até as influências psicológicas próprias a sua singularidade. (foerste, 1996, p. 131).

Barbosa opta pela educação[5] após conhecer[6] o pensamento pedagógico de Paulo Freire. Mais que isso, é o trabalho pós-exílio de Freire na Secretaria de Educação de São Paulo (1989–91) que cria condições para ampliar as experiências de Barbosa concretizadas na Proposta Triangular. Ela acredita que, na elaboração da proposta, a influência maior de Freire esteja na parte relativa à contextualização da obra de arte. Diz ela, em entrevista a Foerste: “a idéia da contextualização, de leitura, é influenciada por Paulo Freire. É a idéia de que nunca se deve descontextualizar o ensino. O ensino deve estar sempre referido ao seu contexto” (barbosa apud foerste, 1996, p. 158). Para Freire (1988), é importante respeitar a cultura e a história de vida dos educandos; assim como não desvincular jamais os conteúdos do contexto de produção.

Segundo Barbosa (1998), as idéias de Freire a influenciam à medida que ela retoma a pedagogia questionadora ou do diálogo[7] em seu trabalho. Fundamento da pedagogia de Freire, o diálogo se justifica porque media o encontro entre homens e o encontro destes com o mundo; a cultura do não-diálogo é a educação do receber, decorar e repetir, isto é, do favorecimento de uma “cultura do silêncio”. O diálogo favorece o intercambio de idéias, por isso deve ser estabelecido entre obra de arte e expectador, no dizer de Barbosa (1998). Nessa mediação, a leitura de mundo de cada educando e as trocas dialógicas embasam a construção de outros conhecimentos sobre a arte. Da teoria dialógica, também valem para o diálogo a colaboração, a união, a organização e a síntese cultural (freire, 1988). A ação dialógica se concretiza em atitudes-chave do/a educador/a: saber escutar o que educandos/as têm a dizer — o que sentem, desejam, esperam e pensam; respeitar as diferenças — culturais, sociais, econômicas, religiosas; partir de sua leitura de mundo e, após tudo isso, escolher, com educandos/as, conteúdos que supram as necessidades de uma educação crítica e libertadora.

Outra influência de Barbosa (2006a) é a arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi, que atuou na construção de uma política cultural para os museus. Bardi[8] concebia os museus como espaços educativos, de memória coletiva e comunicação humana direta; espaços provocantes, vivos, cotidianos, polêmicos. Para Barbosa, os programas educativos dos museus facilitam a aproximação das obras de arte. Diz ela:

Museus são Laboratórios de Conhecimento de Arte, tão importantes para a aprendizagem da Arte como os Laboratórios de Química o são para a aprendizagem da Química. Compete aos educadores que levam seus alunos aos museus estender nas oficinas, nos ateliês e salas de aula o que foi aprendido e apreendido no Museu. (barbosa, 2004b, s. p.).

Além do trabalho educativo em museus, festivais e congressos auxiliaram a construção de outra concepção do ensino de arte no Brasil e, logo, a formulação e consolidação da Proposta Triangular. A realização do Festival de Campos de Jordão, em 1983, foi a primeira experiência brasileira a vincular análise da obra de arte e da imagem com a história da arte e com o trabalho prático. Organizado por Claudia Toni, Gláucia Amaral e Ana Mae Barbosa, foi patrocinado pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e dirigido aos professores da educação básica. Eis o que diz Barbosa sobre esse evento:

Tivemos 400 professores de arte convivendo juntos por 15 dias numa cidade de férias de inverno, Campos do Jordão. [...] Os cursos de apreciação artística foram baseados na decodificação do meio ambiente estético da cidade (da música de compositores populares locais, num projeto de lazer na cidade, pintores e escultores locais, grupos de dança, etc.). Os cursos de leituras de imagens móveis estavam ligados com a decifração da imagem televisiva e a leitura de imagens fixas, principalmente com as pinturas e esculturas da coleção do palácio de inverno do governador, a segunda melhor coleção de arte moderna brasileira, fechada para o público até aquele momento. A leitura da imagem impressa aconteceu como curso de arte-xerox. (barbosa, 1989, s. p.).

Com a divulgação da Proposta Triangularem artigo (1989), livro (1996), encontros, congressos e documentos de secretarias estaduais e municipais de Educação —, as idéias de Barbosa são interpretadas de várias formas; o emprego do termo metodologia[9] levou a uma interpretação dogmática, segundo Barbosa (1998). Preocupada com o fato de os professores tomarem a entãometodologiacomo receita para prática escolar[10] e no afã de corrigir esse equívoco, Barbosa explica o porquê de mudar o termometodologiaparaproposta”:

Foi no esforço dialogal entre o discurso pós-moderno global e o processo consciente de diferenciação cultural também pós-moderno que, no Ensino da Arte, surgiu a abordagem que ficou conhecida no Brasil como Metodologia Triangular, uma designação infeliz, mas uma ação reconstrutora. [...] Culpo-me por ter aceitado o apelido e usado a expressão Metodologia Triangular em meu livro [...], depois de anos estou convencida de que metodologia é a construção de cada professor em sua sala de aula e gostaria de ver a expressão Proposta Triangular substituir a prepotente designação Metodologia Triangular. (barbosa, 1998, p. 33).

Como diz Barbosa (1998), método se vincula com objetivos; e entender a Proposta Triangular como estratégia é desprezar a capacidade dos professores de criar, elaborar e pôr em prática suas idéias. Com efeito, métodos não se reduzem a procedimentos e técnicas: “[...] decorrem de uma concepção de sociedade, da natureza da atividade prática humana no mundo, do processo de conhecimento e, particularmente, da compreensão da prática educativa numa determinada sociedade” (libâneo, 1994, p. 151). Regina Machado reitera a idéia de que a Proposta Triangular não é metodologia, pois a proposta define o objeto da área, o ponto de partida para a enunciação de objetivos, conteúdos e procedimentos metodológicos a serem propostos pelo professor.

Ela [a Proposta Triangular] estrutura o conhecimento de nossa área em bases sólidas, estabelecendo os eixos fundantes da aprendizagem da Arte. Mais do que isso, suscita questões metodológicas instigantes, que levam os professores a enfrentarem a necessidade de rever seu trabalho, buscando novos caminhos para o processo de ensino e aprendizagem artística. (machado, 1996, s. p.).



[1] Nesse período, Barbosa foi diretora do museu e deu consultoria ao projetoArte na escola”, da Fundação Iochpe. As professoras Denyse Vieira e Analice Dutra Pillar, sob orientação de Barbosa, desenvolveram e implantaram o projeto, no qual também foi desenvolvida a então Metodologia Triangular.

[2] Do francês “anthropophagie” (século xvi), derivada do grego “anthropophagía”, a palavra designa o ato de se alimentar de carne humana (antropofagia, 1999). Nas artes, refere-se à manifestação artística brasileira inaugurada pelo Manifesto antropofágico (1928), escrito por Oswald de Andrade. Segundo Ferreira Gullar (1998), o movimento se origina num quadro de Tarsila do Amaral com que ela presenteou Oswald. Entusiasmado com a originalidade do quadro, ele telefonou para Raul Bopp, que, ao ver a pintura, teria sugerido a criação de um movimento em torno desta. Num dicionário de tupi-guarani, encontraram o nome que dariam à obra: Abaporu isto é, antropófago. Assim, a antropofagia significava deglutir — daí o tom metafórico da palavra — a cultura do outro (das Américas, da Europa, de ameríndios e afro-descendentes, dentre outras) para inventar o olhar brasileiro. Como esclarece Nicolau Sevcenko (1998), Oswald, em suas idas à Europa, conviveu com criadores da arte moderna e, com base em sua circunstância pessoal, percebeu algo decisivo: não a economia brasileira, mas também a cultura seguia uma pauta européia; e o Manifesto antropofágico propõe inverter essa lógica colonial: usar a modernidade para sair da dependência cultural.

[3] Na década de 1960, o Central Midwestern Regional Laboratory se dedicou ao estudo da educação estética e concluiu que a expressãoapreciar arteera confusa ou imprecisa; para lhe dar mais clareza, resolveu dividi-la em duas categorias: estética e crítica (saunders, 1990).

[4] Dentre outros, Tânia B. Bloomfield-Schla (s. d.), que se refere à simplificação das quatro disciplinas em três eixos por causa da frágil formação dos professores de arte; Valeska Bernardo (1999) e Suzana Maria Ortiz dos Santos (2004).

[5] Sua formação inicial é em Direito, mas sua prática profissional inicia-se na Escolinha de Arte de Recife.

[6] As vidas de Ana Barbosa e Paulo Freire se cruzaram: ela foi aluna dele; depois, a filha dele, Madalena Freire, foi aluna dela; Madalena foi professora da filha de Barbosa, Anamelia, que foi professora da neta de Freire.

[7] Essa terminologia é usada no livro de Barbosa Artes visuais — da exposição à sala de aula, editado em 2005 e que relata a pesquisa feita pelo programa educativo do Centro Cultural do Banco do Brasil. O programa desenvolve ações contínuas em formação e informação de arte para apoiar, com exposições, professores da disciplina no trabalho com seus alunos e, assim, expandir a compreensão do que seja arte.

[8] A arquiteta participou ativamente da vida cultural no Brasil no período 1958–64 e 1986–90, em especial no que se refere aos museus. Ela reconhece que estes devem se dirigir às massas: levar a cultura ao povo de modo participativo e atuante (vierno, 2002).

[9] O termometodologia” é empregado no livro O vídeo e a Metodologia Triangular no ensino da arte (1992), de Analice Pillar e Denyse Vieira.

[10] Na década de 1970, valorizaram-se os métodos e as técnicas, e a palavra estratégia substituiu a palavra metodologia, que passou a ser entendida como “[...] habilidade do professor em planejar e executaraplicações’ de técnicas de ensino para se atingir os comportamentos educativos desejados (e previamente estabelecidos)” (ferraz; fusari, 1993, p. 100).

13 de junho de 2022

2.2 Ensino de arte no Brasil: apontamentos históricos

 2.2  Ensino de arte no Brasil: apontamentos históricos

 

Vários acontecimentos influenciaram as práticas educativas em arte. Por exemplo: Semana de Arte Moderna, em 1922; bienais internacionais de arte, a partir de 1950; movimentos de cultura popular dos anos de 1960; contracultura na década de 1970; surgimento dos cursos de pós-graduação em arte nos anos de 1980 e as experiências em arte-educação em museus e centros culturais nos anos de 1980 (ferraz; fusari, 1993).

Contudo, destaco aqui as escolinhas de arte como influência no método da livre expressão no contexto escolar. Elas começam com a educação experimental do poeta, chargista, desenhista, pintor, jornalista e educador Augusto Rodrigues (1913–93), na segunda metade do século xx. Nascido no Recife (pe), Rodrigues fundou, em 1948, a primeira Escolinha de Arte do Brasil (eab) para crianças, difundiu a idéia de liberdade de expressão e valorização da espontaneidade infantil, também, para o currículo do ensino normal. A princípio, a eab funcionou em um corredor da Biblioteca Castro Alves, no Rio de Janeiro. Tinha como característica ser uma experiência aberta, sem regras e horários pré-definidos. Nela, as práticas pedagógicas não diretivas foram incentivadas: as crianças eram livres para experimentar todo material que estivesse disponível, podiam desenhar em grandes papéis, cantar; colher flores no jardim e brincar (itaú cultural, 2006).

Em 1961, para influenciar o sistema educacional oficial e disseminar idéias defendidas pelos professores integrantes da eab, criou-se o Curso Intensivo de Arte-educação: especialização para docentes do ensino de arte ministrada por artistas e críticos como Cecília Conde, Fayga Ostrower e Ferreira Gullar (frange, 2001). Até então, não havia curso universitário que formasse professores de arte para atuarem na educação básica. O ensino escolar da arte obedecia à orientação geral da educação escolar do país, então preocupada com a preparação para o trabalho e a capacitação profissional de cidadãos, como se fazia desde 1882. As atividades artísticas escolares se restringiam ao ensino de geometria, prendas domésticas ou, nas escolas particulares, desenho, música, canto orfeônico e trabalhos manuais (ferraz; fusari, 1993).

Em 1971, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação/ldb (n. 5.692/71) foi reformulada e modificou a estrutura do ensino. O ensino de arte foi incluído no currículo escolar como atividade educativa, e não como disciplina, sob a denominação Educação Artística, a ser desenvolvida por um professor polivalente (com formação geral nas linguagens musical, plástica e teatral).

A indicação 36/73 afirma que o curso de Licenciatura em Educação Artística proporcionará sempre a habilitação geral em Educação Artística — e habilitação específica relacionada com as grandes divisões da arte: não mais de uma de cada vez, ante a natureza e amplitude dos estudos a realizar. (foerste, 1996, p. 40).

Em 1973, dada a falta de professores habilitados para aulas de Educação Artística, foram criados cursos de licenciatura curta (dois anos).[1] O despreparo teórico-metodológico dos educadores formados nessa licenciatura promoveu um aligeiramento do saber artístico e um ensino de arte inócuo, “[...] uma educação estética descartável, um fazer artístico pouco sólido e um apreciador de arte despreparado” (barbosa, 1984, p. 88). A prática artística nas escolas foi dominada por desenhos alusivos a datas comemorativas, cívicas, religiosas e a festas escolares. A licenciatura curta em Educação Artística foi uma interpretação errônea do princípio da interdisciplinaridade, porque superficial; o professor de arte tinha de dominar conteúdos diversos e três diferentes linguagens artísticas: artes plásticas, música e teatro. O uso de imagens nas salas de aula de então era quase inexistente. Apreciação estética de obras de arte não era preocupação. Como esclarece Barbosa (1996, p 12):

Apreciação artística e história da arte não têm lugar na escola. As únicas imagens na sala de aula são imagens ruins dos livros didáticos, as imagens das folhas de colorir e, no melhor dos casos, as imagens produzidas pelas próprias crianças. Mesmo os livros didáticos são raramente oferecidos às crianças porque elas não têm dinheiro para comprar livros.

Por volta de 1980, a insatisfação gerada pela situação precária do ensino de arte no Brasil mobilizou educadores brasileiros (espelhados em movimentos internacionais da categoria) em prol de uma reorganização desse ensino nas escolas.[2] Atentos ao empobrecimento do universo imagético dos alunos — reduzido a influências da indústria cultural —, os arte-educadores brasileiros, organizados em associações,[3] reconheceram a necessidade de haver novas concepções e práticas para o ensino de arte. É nesse contexto que Barbosa elabora a Proposta Triangular para o ensino de arte como abordagem que inclui a prática pedagógica das artes nas escolas não mais centrada no fazer artístico; agora, ela se volta à construção de conhecimentos sobre arte e à apreciação artística, com ênfase no estudo do contexto histórico de produção da obra.

Enquanto se aprofundava a luta pró-democracia no Brasil — que conduziu à reconquista das eleições diretas para governador, em 1982, e para Presidência da República, em 1984 —, ampliava-se o conhecimento e as mobilizações relativas à situação educacional do país. Nessa conjuntura, promulga-se a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional/ldben (n. 9.394/96);[4] a promulgação traduzia princípios propostos pelo Banco Mundial e sugeria uma sensação falsa de inovação. Professores e artistas organizados em federação (Federação de Arte Educadores do Brasil/faeb) foram decisivos quanto a reivindicar e conseguir a obrigatoriedade do ensino da arte na educação básica.[5]

A fim de normatizar os diferentes componentes curriculares, o então Ministério da Educação e Cultura (mec) lança, em 1997, os Parâmetros Curriculares Nacionais (pcn).[6] Definidos na sua apresentação como referenciais para a renovação e reelaboração da proposta curricular brasileira (brasil, 1997),

Os pcn devem ser entendidos pelos professores como documentos norteadores de sua prática pedagógica, não como proposições de caráter impositivo, a serem seguidas categoricamente. Enquanto documentos norteadores precisam ser analisados, interpretados e criticados; precisam ser adaptados às necessidades decorrentes das diferenças étnicas, culturais, de gênero, etárias, religiosas etc., e das desigualdades socioeconômicas presentes nas multiplicidades das realidades brasileiras. (almeida; barbosa, 2004, s. p.).[7]

As diretrizes para o ensino de arte na educação básica são apresentadas em três documentos: pcn/Arte para o ensino fundamental (brasil, 1997), Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (brasil, 1998) e pcn/Ensino médio (brasil, 1999).

A proposta de um currículo nacional para a educação básica — os pcn — recebeu pesadas críticas de educadores, por diferentes motivos:

[...] os educadores sabem que nenhuma prática pedagógica pode ser transformada por força da lei ou de documentos escritos; transformações desta ordem exigem mudanças nas condições concretas de trabalho, incluindo-se entre elas uma formação contínua dos professores/as, melhores salários, modificações na gestão escolar e infra-estrutura das escolas, entre outras. (almeida; barbosa, 2004, s. p.).

A pesquisadora brasileira Maura Penna deixa clara sua crítica à política educacional brasileira e aos parâmetros: “a política educacional brasileira está atrelada aos interesses dos organismos internacionais que concebem a educação como bem de consumo e instrumento de adestramento da mão-de-obra para o mercado de trabalho” (penna, 1997, p. 19). Ainda conforme essa autora, os pcn foram organizados sem que houvesse ampla participação dos professores; foram construídos com base no modelo espanhol de reforma curricular, orientado por César Coll.[8] Contratado como consultor do mec para a elaboração dos pcn brasileiros, Coll organizou uma equipe de pareceristas especialistas em suas disciplinas, porém sem representação de entidades de classe ou movimentos docentes, pois não tencionava criar um debate sobre o currículo nacional. A apropriação do modelo espanhol como referência tem dois grandes equívocos: implantação de um modelo formulado no contexto espanhol; contratação de uma equipe sem respaldo de entidades de classe e que desconheciam a realidade educacional das escolas de ensino fundamental e médio.

Os pcn deixam entrever forte tendência à homogeneização da educação, e isso não garante a qualidade do ensino ante a variedade cultural do país e ao pouco que se tem feito para valorizar a expressão de grupos culturais minoritário. Ao não incluir professores, alunos e diferentes segmentos sociais na participação da construção de uma proposta curricular, de modo a representar seus anseios e suas características culturais, os pcn configuram-se como propostas fechadas e fadadas a não ser postas em prática. Conforme Almeida e Barbosa (2004), é no processo que se constrói um currículo, em função de necessidades e problemas próprios de cada escola, pois é forjado em valores e conhecimentos, habilidades e afetos de quem, com a escola, relaciona-se direta ou indiretamente.

Com grande ênfase nas expressões artísticas eruditas e ocidentais, os pcn/Arte não sensibilizam o professor quanto à adoção de uma postura multiculturalista; não discute questões como função da arte em diferentes culturas ou o papel do artista nestas. Daí se pode supor uma visão elitista da arte. Isso é curioso, visto que os pcn/Arte têm clara inspiração na Proposta Triangular de Barbosa, que, no entanto, não é mencionada. Diz ela:

Quando, em 1997, o governo federal, por pressões externas, estabeleceu os Parâmetros Curriculares Nacionais, a Proposta Triangular foi a agenda escondida da área de Arte. Nesses Parâmetros foi desconsiderado todo o trabalho de revolução curricular que Paulo Freire desenvolveu quando secretário municipal de Educação (89–90) com vasta equipe de consultores e avaliação permanente. Os pcns brasileiros dirigidos por um educador espanhol des-historicizam nossa experiência educacional para se apresentarem como novidade e receita para a salvação da Educação Nacional. A nomenclatura dos componentes da Aprendizagem Triangular designados como: Fazer Arte (ou Produção), Leitura da Obra de Arte e Contextualização, foi trocada para Produção, Apreciação e Reflexão (da 1ª à 4ª séries) ou Produção, Apreciação e Contextualização (5ª à 8ª séries). Infelizmente, os pcns não estão surtindo efeito e a prova é que o próprio Ministério de Educação editou uma série designada Parâmetros em Ação, que é uma espécie de cartilha para uso dos pcns, determinando a imagem a ser “apreciada” e até o número de minutos para observação da imagem, além do diálogo a ser seguido. (barbosa, 2003a, p. 51).



[1] O movimento das escolinhas de arte perdeu importância e força após a criação de cursos universitários de Educação Artística e de mudanças na política interna (barbosa, 1996).

[2] A politização dos arte-educadores começou em 1980, na Semana de Arte promovida pela Escola de Comunicação e Artes/eca da usp, que reuniu 2,7 mil arte-educadores do país (barbosa, 1996, p. 13). Os cursos de atualização ou treinamento financiados para professores pelo governo começaram após a ditadura militar. O programa pioneiro foi o festival de Campos de Jordão (sp), em 1983 — primeiro a conectar análise da obra de arte/da imagem com história da arte e trabalho prático (barbosa, 1996, p. 16).

[3] A primeira associação foi a Sociedade Brasileira de Educação através da Arte (sobreart), fundada no início dos anos de 1970; a faeb se inicia em 1987, quando existiam 14 associações estaduais de arte-educadores.

[4] A proposta de elaboração tem origem na Conferência Mundial de Educação para Todos, convocada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (unesco), pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (unicef), pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (pnud) e pelo Banco Mundial. Foi realizada em 1990, em Jomtien, na Tailândia, onde nove países chegaram a algumas posições sobre quais são as necessidades básicas da aprendizagem para todos, para tornar universal a educação fundamental e ampliar as oportunidades de estudo para crianças, jovens e adultos.

[5] Em 1988, quando a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação começou a ser discutida na Câmara e no Senado, três projetos eliminavam a arte do currículo das escolas de ensino fundamental e médio (barbosa, 1996, p. 6).

[6] Embora os pcn tenham produzido uma reflexão sobre questões sociais que devem ser abordada em todos os componentes curriculares, não se pode esquecer que são consoantes com o projeto neoliberal de globalização e a política de investimento do Banco Mundial, que financia o setor educacional como medida de alívio e redução de pobreza no Terceiro Mundo e o considera um dos mais importantes.

[7] O texto original se encontra em inglês; uso aqui versão em português inédita cedida por uma das autoras.

[8] Professor e pesquisador espanhol da Universidad de Barcelona na área de psicologia e educação.