26 de setembro de 2022

3.3.3 Concepções e práticas dos estudantes-professores/as sobre a Proposta Triangular - Clesia

 

3.3.3  Concepções e práticas dos estudantes-professores/as sobre a Proposta Triangular

 

Que concepções prévias de propostas de ensino podem ter estudantes de licenciatura já atuante como professores? No caso desta pesquisa, quais são as concepções prévias que os/as estudantes-professores/as entrevistados têm da Proposta Triangular para o ensino de arte? Ouviram falar da proposta antes de ingressarem na faculdade? Dentre os/as estudantes-professores/as entrevistados nesta pesquisa, duas afirmaram ter ouvido falar: Raquel e Clésia

Raquel, cuja prática se apoiava constantemente em manifestações artísticas, conheceu a Proposta Triangular (então Metodologia Triangular) por intermédio de sua coordenadora:

Ela [a coordenadora] me falou a primeira vez em Ana Mae Barbosa. Quando viu meu trabalho, trazia [textos de] Ana Mae e, às vezes, me explicava as coisas que eu estava fazendo. A proposta, por exemplo: se eu estava explorando uma imagem com as crianças, a partir da obra de arte, então ela falava na proposta de Ana Mae; que ela usava o termo Metodologia Triangular.

Clésia conheceu o termo Proposta Triangular num dos cursos que fez no cefor.[1] Mas comenta: “não pus tanta ênfase no negócio, não!”. na faculdade ela iria se aprofundar na metodologia de ensino de arte e saber um pouco mais sobre essa proposta.

Embora tenha feito o curso técnico de Educação Artística no Conservatório Estadual de Música Renato Frateschi, em Uberaba, Tininha disse que não ouviu falar: “ouvi mesmo na faculdade. [...] No conservatório, se foi falado, foi de uma outra forma, não exatamente assim. Mas eu acho que está meio englobado. A gente vai trabalhando e vai modificando as palavras”.

Também Mizac não ouviu falar da Proposta Triangular antes de cursar a licenciatura em Educação Artística/Artes Visuais. Ele, de fato, freqüentou outros cursos, mas nenhum era relativo à Educação.[2] Foi nessa licenciatura que tomou contato: “A proposta, eu vim a ter contato com ela na faculdade. Me familiarizei com o termo na faculdade”.

Clésia sintetizou sua concepção de Proposta Triangular assim: “[...] é o fazer arte, o pensar e o sentir”. Ela continua sua explicação enfatizando a contextualização:

A gente tem um contexto [para embasar] alguma obra, contextualizando o que ela é, quando que ela surgiu, o que é que ela tenta passar para a gente, o conteúdo; e diante deste contexto a gente tenta levar para o nosso cotidiano, para o dia-a-dia, para o nosso contexto e [direcionar] até a releitura.

Clésia mostrou uma pasta com registro de trabalho cujo desenvolvimento fez uso da proposta. A pasta contém o projeto, fotos e relatórios sobre o desenvolvimento do trabalho. Educação não formal, o projeto se chama “Modelarte: modelagem em argila” (anexo e) e se desenvolveu na Associação de Bairro Grupo Amigos da Água, com sede em Uberaba, no bairro Valim de Melo. Integrou o programa de estágio do curso de licenciatura em Educação Artística/Artes Visuais do cesube, com duração de 40 horas, e foi realizado às quintas-feiras e aos sábados. O público-alvo eram pré-adolescentes e adolescentes matriculados nas séries entre quinta e oitava. As aulas de modelagem ocorreram no galpão da associação.

 

 

figura 3. Galpão da Associação de Bairro Grupo Amigos da Água

Fonte: Acervo de Clésia.

 

 

 

 

 

 

 

figura 4. Alunos de Clésia nas atividades de modelagem

Fonte: Acervo de Clésia.

Clésia prefere argila como recurso para suas aulas por ser um material de baixo custo e fácil de conseguir. Dentre seus objetivos, está reconhecer a importância da argila na vida das pessoas, pois é empregada “[...] desde a Antigüidade e atualmente como material de grande utilidade sob a forma de peças utilitárias ou decorativas”. Outro objetivo é buscar informações sobre arte entre artistas e em documentos, acervos no espaço escolar e fora dele (cartazes, discos, ilustrações, jornais, livros, revistas e vídeos) e acervos públicos (bibliotecas, cinematecas, centros de cultura, fonotecas, galerias, museus e videotecas) para organizá-las e, assim, reconhecer e compreender produtos artísticos e concepções estéticas história das diferentes culturas e etnias.

O projeto deixa entrever a preocupação de Clésia com a leitura e o contato com obras e objetos artísticos. Seus objetivos são: “[...] apreciar, desfrutar e julgar os bens artísticos de distintos povos e culturas produzidas ao longo da história e na contemporaneidade”. O projeto menciona, ainda, o trabalho com a auto-estima e o desenvolvimento de habilidades “adormecidas”; para tanto, estabelece como meta a reconstrução da identidade pessoal e social dos alunos envolvidos. Vale notar, na fala de Clésia a propósito do projeto, uma concepção de arte ainda romântica — “despertar a arte” — e a identificação desta como artefato social.

Na metodologia descrita, Clésia inicia sua aula com uma “roda de conversa” (aula expositiva dialogada), na qual apresenta aos alunos imagens (figs. 5, 6, 7) que poderão ser referência para o trabalho que ela lhes propõe realizar.

 

 

figura 5. Cerâmicas de Mestre Vitalino

Fonte: Acervo de Clésia.

 

figura 6. Vitalino Santos, o Mestre Vitalino

Fonte: Acervo de Clésia.

 

 

 

figura 7. Arte asteca

Fonte: Acervo de Clésia.

 

                  figura 8. Cerâmica do uberabense Hélio Siqueira

Fonte: Acervo de Clésia.

 

Nessa metodologia, Clésia procura introduzir algum conceito (expressão, relevo, volume, textura, dentre outros) e contextualizar as imagens no tempo histórico em que foram produzidas. Num relatório sobre o desenvolvimento do projeto contidos em sua pasta, ela diz que, ao perceber a semelhança do trabalho de um aluno com a expressão da arte egípcia, trouxe para a sala de aula imagens referentes a essa produção artística. Assim, Clésia apresenta aos alunos reproduções de um número variado de estilos e expressões tridimensionais: arte pré-colombiana, arte egípcia e a cerâmica brasileira de Mestre Vitalino. Ela usa imagens de artistas consagrados como Rodin e de outros menos conhecidos como Cláudio Aun (que ela achou numa revista de empresa aérea). A maioria das imagens são reproduções em papel, recortes de revistas ou xerocópias coloridas de livros ou enciclopédias organizadas numa pasta, que ela apresenta aos alunos e deixa à disposição deles para que a manipulem quando quiserem.

 

                  figura 9. Aluna de Clésia exibe peça modelada por ela.

Fonte: Acervo de Clésia.

 

Clésia se preocupa com mostrar a produção de Uberaba, reunindo reproduções de obras desses artistas (fig. 10). Ela promoveu, ainda, uma visita à Casa do Artesão, onde Cláudio Destro expunha seus trabalhos modelados em argila. Para ela, o contato com obras originais é importante, sobretudo quanto às tridimensionais, pois a fotografia capta um ângulo de visão da obra.

 

figura 10. Alunos de Clésia em visita à Casa do Artesão

Fonte: Acervo de Clésia.

 

O projeto finaliza com a exposição dos trabalhos produzidos pelos alunos no cemea, onde Clésia trabalha como educadora. Ela faz questão de que a família dos alunos vá à exposição.

 

 

figura 11. Exposição de peças modeladas por alunos de Clésia.

Fonte: Acervo de Clésia.

Na prática educativa de Clésia, a Proposta Triangular se expressa no projeto pelas palavras: “[...] levando imagens feitas em diferentes épocas, estilos e culturas, relacionando as atividades propostas, fazendo o triângulo de Ana Mae Barbosa, situando-os no tempo, diversificando as vivências do grupo e desafiando-os para a produção no barro”. Também se expressa nas ações direcionadas aos alunos: leitura de imagem, fazer artístico e contextualização. A prática como prioridade é comum nas atividades de ateliê[3] na educação não formal desenvolvidas pela maioria das pessoas. Clésia, também, enfatiza a prática; mas, diferentemente, preocupa-se em trazer informações sobre a arte e a produção cultural de diferentes povos. Ela argumenta que desenvolveu o projeto “[...] a partir da Proposta Triangular, dando ênfase à modelagem em argila [e procurando] desenvolver um olhar diferente sobre a modelagem”. Afirma ela: “[...] a cada encontro, conversávamos sobre o trabalho tridimensional de artistas, levando reproduções para eles apreciarem”. Assim, Clésia acredita que está “[...] ampliando o conhecimento de mundo [de seus alunos]” e que, quanto mais amplo forem os conhecimentos, maior será a capacidade de percepção e interpretação do mundo contemporâneo.



[1] Curso ministrado por mim, entre 1997 e 2000.

[2] Fez cursos de História da Arte na Fundação Cultural de Uberaba.

[3] Aqui, refiro-me a escolinhas de arte espalhadas no Brasil, que na origem priorizavam a livre expressão.

22 de setembro de 2022

3.3.2 Contribuição da licenciatura em Educação Artística/Artes Visuais para a prática docente

 

3.3.2  Contribuição da licenciatura em Educação Artística/Artes Visuais para a prática docente

 

A licenciatura em Educação Artística/Artes Visuais poderia contribuir para a prática docente de estudantes-professores/as? Procurei reconhecer tais contribuições na fala dos/as entrevistados/as sujeitos desta pesquisa.

Para Clésia, a contribuição se traduziu em saberes disciplinares. Em sua experiência com arte na educação não formal, ela se sentia insatisfeita com o parco conhecimento sobre arte adquirido no magistério; sentia carência de algo mais para organizar sua atuação em sala de aula. Ela comenta sua experiência docente — construída na vivência de mundo, na prática, sem fundamentação teórica — e como os conhecimentos da academia organizaram seus saberes práticos. Clésia foi incisiva ao esclarecer como o curso modificou sua maneira de dar aulas de arte:

Antes da faculdade, eu experimentava; tinha minha vivência de mundo e levava [a arte] para a sala de aula, mas sem um eixo, sem direção. Eu me sentia perdida. Agora, na faculdade, a gente sabe situar os fazeres no tempo, a gente sabe encaminhar melhor qual o objetivo, o que a gente quer para cada atividade.

Clésia sempre buscou inovar sua prática mediante cursos. Freqüentou a formação continuada no Centro de Formação de Professores da Prefeitura Municipal de Uberaba (cefor), onde se achou como arte-educadora: “sempre gostei de trabalhos artísticos e [no cefor] fiquei sabendo que era importante saber mais sobre arte e educação”. A fala de Clésia é significativa ao se ter em mente as reflexões de Tardif (2003). Com Saberes docentes e formação profissional, esse autor nos faz pensar nos saberes dos professores em seu trabalho e sua formação. Trata-se de saberes sociais, por serem partilhado por pessoas e construído por elas, pois o professor sozinho não define seu saber profissional: este se liga a uma situação de trabalho com outros, num ambiente de conhecimento e na sociedade. Se são aplicados saberes docentes distintos na execução do trabalho, é por causa da ação docente, visto que incluem o saber sobre o trabalho, assim como o saber usado para concretizá-lo.

Para Tardif (2003), vários saberes compõem o “saber docente”, dentre estes, o disciplinar, o pedagógico e os experienciais. O saber disciplinarou do conteúdo — refere-se ao domínio da área de especialização do professor, à compreensão da forma de pensar e entender a construção do conhecimento de sua disciplina e à discussão e organização deste. O saber pedagógicoou saberes da formação profissional (das ciências da educação e da ideologia pedagógica) — referem-se aos conhecimentos de princípios, objetivos e estratégias usados pelo professor para organizar e desenvolver sua disciplina e seu domínio de sala de aula. Os saberes pedagógicos são concepções originárias de reflexões sobre a prática educativa no sentido amplo do termo. Este conhecimento vai além de sua área específica:

Em suma, o professor ideal é alguém que deve conhecer sua matéria, sua disciplina e seu programa, além de possuir certos conhecimentos relativos às ciências da educação e a pedagogia e desenvolver um saber prático baseado em sua experiência cotidiana com os alunos. (tardif, 2003, p. 39).

A busca por conhecimentos se mostra na fala de Mizac, sob a forma de pesquisa. Antes de entrar na faculdade, ele esculpia em pedra-sabão e fazia montagens com objetos cotidianos — sempre confiante em sua sensibilidade e intuição pessoal. Comenta que, por muito tempo, esteve “preso ao ateliê” e sentiu necessidade de “ter contato com mais pessoas na rua”; também procurou dar aulas, mas a atividade docente era exercida empiricamente. Nesse caso, a reflexão foi proporcionada pelo curso. Diz ele,

[...] a faculdade [...] ajuda muito. Primeiro, ela me faz pesquisar, me põe a ler, tanto é que minha literatura [leitura] é em função da faculdade. Tem que ser assim. Sou obrigado a pesquisar... As pesquisas vão me levando a cada dia.

Para Mizac, a dimensão do estudo acadêmico e mesmo a pesquisa em arte vão se mostrando de suma importância: ele reconhece que o professor de Arte tem de estudar e ter conhecimentos específicos. Com efeito, Tardif (2003) afirma que os professores são atores e sujeitos do conhecimento, por isso é preciso parar de pensar neles unilateralmente, como se fossem técnicos que aplicam conhecimentos produzidos por outros (pesquisadores, peritos em currículos). Essa visão redutora desconsidera o professor como sujeito ativo, crítico — “[...] pesquisador da educação — [...] um ator que desenvolve e possui sempre teorias, conhecimentos e saberes de sua própria ação” (tardif, 2003, p. 235); assim como desconsidera sua prática como espaço de produção teórica.

Cada professor tem seu jeito de ser professor e de aprender a sê-lo, sua forma de conduzir a sala de aula e se relacionar com alunos, seu modo de usar recursos pedagógicos e enfrentar problemas diários. Essa peculiaridade, Nóvoa chama de “espécie de segunda pele profissional” (nóvoa, 1997, p. 19); Tardif, de saber experiencial: um saber vivido na individualidade, ligado às funções do professor — que, no cumprimento delas, é mobilizado, modelado, adquirido. Esses saberes surgem da experiência e são por ela validados; materializam-se na experiência individual e coletiva, em forma de habitus[1] e habilidades, de saber-fazer e saber-ser. Portanto, o saber docente é prático, interativo, sincrético, heterogêneo, aberto e personalizado. É temporal: transforma-se e constrói-se na história.

Posto isso, deduz-se que ensinar é mobilizar saberes, usá-los de novo no trabalho para ajustá-los e transformá-los pelo e para o trabalho. Segundo Tardif,

Todo saber implica num processo de aprendizagem e de formação e, quanto mais desenvolvido, formalizado e sistematizado, é um saber, como acontece com as ciências e os saberes contemporâneos, mais longo e complexo se torna o processo de aprendizagem, o qual, por sua vez, exige uma formalização e uma sistematização adequadas. (2002, p. 35).

Nesse sentido, reafirmo: a prática profissional docente não é espaço de “aplicação” de saberes universitários; é espaço de ação inteligente, emocional, sobretudo marcada pelo selo da expressividade da pessoa que age. Esse papel de agente pedagógico não pode ser entendido à margem da condição humana; “na educação, as ações são, pois, reflexo da singularidade daqueles que a realizam” (sacristán, 1999, p. 32).

No caso de Raquel, a licenciatura contribuiu na medida em que enriqueceu seu saber disciplinar e ajudou-a a construir seu conceito de arte como disciplina. Antes, ela a concebia como instrumento, recurso pedagógico; agora, sente que pode ser mais que isso:

Eu sinto que o curso me trouxe um conhecimento teórico maior. Acho que consegui construir um entendimento sobre autonomia da área de conhecimento da arte, que eu não tinha. Era como uma área de conhecimento que pode viver sozinha, que tem autonomia; não que eu ache que as coisas consigam viver tão afastadas assim. Para mim depois do curso, a arte ganhou status, é soberana. Como poderá ser para o lingüista a língua portuguesa, a matemática para o matemático. Ela é soberana assim, ela caminha por ela, pelas próprias pernas, entendeu? Mas ela é soberana que consegue abraçar, abraçar a filosofia, a sensibilidade do outro... Modificou a maneira de agir, a maneira de sentir, a maneira de fazer, porque hoje eu tenho um conhecimento que não tinha.

As palavras de Raquel deixam entrever que o curso do cesube dissemina idéias pós-modernistas de arte-educação, pois a arte é considerada como parte da cultura, embora tenha dinâmica própria; noutras palavras, a arte é objeto de investigação.

No caso de Tininha, a contribuição mais importante do curso para sua formação converge para a idéia de que o saber docente é um saber social, porque partilhado e construído coletivamente; ela reconhece a importância da troca de experiência entre alunos/as do curso:

Lá na minha turma, cada um vem de um lugar. Nem todos são artistas e [...] alguns trouxeram alguma bagagem de coisas que eu não sabia. Então, cada um vai lá e mostra uma coisa bacana. A gente acaba se interessando e acaba trocando, ensinando.

Com efeito, a escola é espaço/tempo de encontro entre gerações de pessoas, de socialização, de interação, de formação e de aprendizagem das artes de ser. Formar não é tarefa de um agente só; diz-se que alunos e professores se formam mutuamente, na troca de conhecimentos e histórias de vida. Para Freire (2004, p. 22), “[...] ensinar não é transferir conhecimentos, mas criar possibilidades para sua produção ou sua construção”. Transferir conhecimentos se justificava tempos atrás, pois a escola era um dos poucos lugares onde o saber era elaborado. O contexto atual tem vários espaços de informação que atribuem à escola e ao professor o papel de gerenciar e significar o conhecimento; o professor — a docência — deixa de ser transmissor de conhecimento para assumir a tarefa de organizar o conhecimento e o trabalho do aluno na produção e construção do conhecimento.

Como se pode deduzir do caso de Tininha, que já atua na docência, o saber docente é social por ser adquirido, também, em diferentes contextos, inclusive entre colegas: o conhecimento pode emanar do professor, da sala de aula onde é ela aluna, assim como da interação com colegas de turma e da socialização profissional. Afinal — assevera Freire (1996, p. 68) —, “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. O aprender/ensinar ocorre “[...] numa rede de interações com outras pessoas, num contexto onde o elemento humano é determinante e dominante e onde estão presentes símbolos, valores sentimentos, atitudes” (tardif, 2003, p. 50). Por acreditar na colaboração entre professores (como entre colegas de Tininha já atuantes como professores), deduzo que, também, ela acredita na troca de experiências e que esta faz parte da aquisição do saber docente entre professores. “Ainda que as atividades da partilha não sejam consideradas como obrigação ou responsabilidade profissional, pelos professores, a maior parte deles expressa a necessidade de partilhar sua experiência.” (tardif, 2003, p. 53).



[1] Esse termo é empregado pelo pensador Pierre Bourdieu (1994, p. 61), para quem se trata de um “[...] sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser objetivamente ‘reguladas’e ‘regulares’, ser mero produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e do domínio expresso das operações necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente”.

3.3 Construção da cena

 

3.3  Construção da cena

 

Feitas essas observações preliminares sobre os sujeitos da pesquisa, passo ao procedimento de análise das entrevistas, que, de início, pareceu-me semelhante a montar um mosaico.[1] Como organizar os dados das entrevistas, peças do meu mosaico? Que dados analisar primeiro? Quais ficariam para depois?

A primeira tentativa foi descrever o diálogo com cada entrevistado/a, mas logo percebi que, se assim procedesse, meu trabalho ficaria enfadonho, pelas idas e vindas. Por isso, resolvi organizar os dados segundo palavras-chave que expressassem meus questionamentos na pesquisa: escolha do curso; experiência docente; contribuição da licenciatura para a prática docente; Proposta Triangular (compreensão da proposta e a prática dos eixos) e leitura de imagens. Nessa seleção e organização do que usar das falas do/as estudantes-professor/as, a cena foi construída.

 

3.3.1  Escolha do curso e experiência docente anterior ao ingresso no curso

 

Por que um/a docente atuante busca se matricular numa licenciatura, e em Educação Artística/Artes Visuais? Nesta pesquisa, tal questão se projetou porque quase metade dos alunos matriculados na licenciatura atuava no magistério.

O entrevistado Mizac afirma ter escolhido por três motivos: porque gosta de arte, já atuava como artista e sentia necessidade de se profissionalizar para ser professor. Dada sua atuação como artista em Uberaba antes de ingressar na licenciatura, Mizac era convidado por diversos setores (Secretaria Municipal de Educação, Casa do Artesão, Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas/sebrae) para ministrar oficinas de arte. Mas, por ser autodidata, sentia falta de certos conhecimentos necessários à docência, a exemplo de conhecimentos sobre como planejar e sobre o ensino. Diz ele:

Ela [uma funcionária da Secretaria Municipal de Educação] falou: “Mizac, me prepara o começo, o meio e o fim do seu trabalho”. Eu pensei: “Caramba! Eu nunca fiz isso!”. Eu nunca tinha despertado para [a importância de] um planejamento. Então ela me orientou.

Mizac não concebia planejamento como organização da ação docente nem como algo que vai além do preenchimento de formulários de controle administrativo; afinal, como diz José Carlos Libâneo (1994), o planejamento guia a execução do trabalho docente; através dele, o professor pode preparar suas aulas com facilidade, visto que pode prever uma seqüência e assegurar a unidade e coerência do trabalho.

A entrevistada Raquel, vinda de uma família de artistas, diz que sempre gostou de artes, recurso que ela empregou em suas aulas como professora: “Eu trazia a arte como um elemento facilitador do processo de aprendizagem, como recurso pedagógico, e não arte pela arte”; isto é, recorria à “arte como aliada” do processo de ensino e aprendizagem. Preocupada com o desenvolvimento humano, Raquel afirma: “[...] a essência [da educação] é tocar a pessoa humana” e que a arte possibilita essefeliz encontro”. Dada a inexistência da licenciatura em Artes em Uberaba naquela época, ela iniciou, várias vezes, o curso de Pedagogiamas diz que sempre desejou o curso de Artes.

Como Raquel, Clésia buscou o curso de Pedagogia para sua formação acadêmica inicial, sobretudo para ter ascensão salarial, incentivada pela coordenadora de seu local de trabalho. Mas, ela sempre desejou ser “arte-educadora”. Clésia mencionou o quão difícil seria estudar forapor exemplo, graduar-se em Artes na Universidade Federal de Uberlândia (a 105 quilômetros de Uberaba). Por isso, abandonou o curso de Pedagogia para abraçar as artes assim que soube da licenciatura em Educação Artística/Artes Visuais no cesube.

Como os/as demais entrevistado/as, Tininha afirmou que, desde criança, gosta de arte. Ela relata, por exemplo, que na infância, passada em São Paulo, sempre admirou trabalhos de arte: “a arte sempre me chamou a atenção”. Mas ela foi cursar outra graduação, pois Uberaba não oferecia a licenciatura em arte: “[...] quando eu decidi fazer faculdade, o [...] mais próximo era História”. Ela relata que, na graduação em História, desenvolveu trabalhos voltados à história da arte e contacom paixãoque, em cada um, ela fazia questão de salientar a presença da arte.

Como se , a experiência docente do/as estudantes-professor/as sujeitos desta pesquisa começa antes de entrarem na academia. A característica comum a todos/as é que ministrarem aulas antes de ingressarem na licenciatura, sejam experiências em diferentes níveis.

Clésia começou a atuar na docência como professora na educação não formal, no atual Centro Municipal de Educação Avançada (cemea), num trabalho que busca ensinar “[...] valores através do convívio, ensinando as regras, com atividades embasadas na arte, dança, uma vivência bem diversificada”. O projeto do cemea lhe possibilitou criar formas de ensinar arte e experimentar técnicas e metodologias. Mas, segundo Clésia, nesta experiência docente faltava orientação para que ela desempenhasse melhor seu trabalho com o ensino de arte. No cemea, Clésia sentia que sua coordenadora não tinha formação suficiente para fornecer suporte e responder a indagações. Ao se sentir perdida e em dúvidas, procurava a coordenação, mas não obtinha resposta satisfatória para seu questionamento: “[...] ela [a coordenadora] sempre dava uma de esquerda e nunca levava a sério”.

Raquel, também com formação inicial de magistério, lecionou Filosofia no ensino fundamental por dez anos e deixou a sala de aula para ser coordenadora pedagógica. Quando conta sua experiência docente antes da faculdade, diz que não ensinava artes: empregava-a como recurso pedagógico. Seu envolvimento com atividades artísticas era constante:

Eu nunca consegui preparar um trabalho que não tivesse uma pincelada de desenho, pintura ou teatro ou uma música. Eu sempre usei estas linguagens artísticas para poder chegar ao outro. [...] Eu trazia a arte como um elemento facilitador do processo de aprendizagem, como recurso pedagógico, e não arte pela arte.

A postura inicial de Raquel no seu trabalho docente deixa entrever influência do filósofo inglês Herbert Read (1982).[2]

Antes de entrar na licenciatura, Mizac tinha experiência docente na prática de oficinas e minicursos de arte. Ele relata que, de início, usou a “intuição” para lecionar para adolescentes em situação de risco:

Minha primeira experiência em que saí do ateliê para ter contato com pessoas, para passar e transmitir alguma coisa, e receber, [...] já peguei de cara o público adolescente especial para trabalhar, do conselho tutelar, [...] com problemas de alcoolismo e tudo. [...] Mas a gente vai apanhando e vai aprendendo.

Com efeito, um professor pode entender de muitos conteúdos, pode até dispor de métodos de ensino; mas as decisões da prática do ensinar são “[...] por si mesmas uma arte, se entendermos por arte uma estruturação pessoal, uma sintonia específica com a situação daquele momento” (dussel, 2003, p. 22). Ensinar exige não só o saber sistemático; também o saber informal; e Mizac reconhece o valor da experiência na construção desse saber.

Tininha iniciou a carreira docente na educação infantil. Historiadora, nunca lecionou a disciplina História: responde pela disciplina Arte em todas as séries iniciais do ensino fundamental na escola particular onde trabalha e onde, antes, ela desenvolveu o projeto sobre arte “Portinari para crianças”; um dos resultados desse projeto foi sua contratação como professora de Arte. Por ter formação em música, também leciona flauta doce na escola.

Posto isso, uma questão se impõe: a formação docente, vista há algum tempo como acumulação de conhecimentos dispostos de forma estática (teoria, livros e técnicas) e desligados de contextos e relações sociais. Começava na entrada na academia e terminava no fim do período acadêmico, quando então se estava apto a ditar conhecimentos para os alunos. Não é segredo que hoje os saberes docentes se vinculam à identidade docente, à experiência de vida e à história profissional. Como esclarece Maurice Tardif:

[...] os saberes são elementos constitutivos da prática docente. [...] articula, simultaneamente [...] diferentes saberes: os saberes sociais, transformados em saberes escolares através dos saberes disciplinares e dos saberes curriculares, os saberes oriundos das ciências da educação, os saberes pedagógicos e os saberes experienciais. Em suma, o professor ideal é alguém que deve conhecer sua matéria, sua disciplina e seu programa, além de possuir certos conhecimentos relativos a ciências da educação e a pedagogia e desenvolver um saber prático baseado em sua experiência cotidiana com os alunos. (tardif, 2003, p. 39).

Assim sendo, então o aprender a ser professor começa antes de se ingressar na academia. Afinal, como diz Miguel Arroyo (2000, p. 124), “as lembranças dos mestres que tivemos podem ter sido nosso primeiro aprendizado como professores. Suas imagens nos acompanham como as primeiras aprendizagens”. A imagem da primeira professora ou do primeiro professor está presente na memória e influencia a atuação como professor.

Hoje a concepção de formação docente supõe um processo contínuo, ao longo da vida e marcado por sobressaltos, pelo inesperado, pelo inusitado. Por isso, a formação de professores precisa ser encarada como percurso, viagem sem parada final. As palavras de Paulo Freire reiteram essas afirmações:

Ninguém começa a ser educador numa certa terça-feira às quatro horas da tarde. Ninguém nasce educador ou é marcado para ser educador. A gente se faz educador, a gente se forma como educador permanente, na prática e na reflexão sobre a prática. (freire, 1986b, p. 61).

Nesses termos, licenciaturas e outros cursos para professores compõem a formação docente. Fundamental é que a formação inicial considere princípios pedagógicos componentes do trabalho futuro do docente: interdisciplinaridade, contextualização e integração de áreas em projetos de ensino. Nas licenciaturas, a condição de aluno prepara o futuro professor; por isso, as situações de aprendizagem da formação inicial deverão promover o desenvolvimento de habilidades que, muitas vezes, esse futuro docente pôde desenvolver (mello, 2000). São as histórias de vida[3] do professor e as experiências vividas por ele no percurso acadêmico, pessoal e profissional que vão ajudar a torná-lo um profissional autônomo, isto é, a consolidar esse perfil. O saber docente é adquirido no contexto de uma história de vida e de sua carreira profissional (tardif, 2003).



[1] Do italiano “mosaico” (mosaico, 1999), trata-se de um embutido de pedras pequenas ou outras peças coloridas dispostas de forma a compor um desenho, uma imagem. Nãolugar predeterminado para cada pedra; o procedimento não é único: pode-se montar várias imagens com as mesmas pedras. Ainda que estas pareçam desconexas, ação do artista as torna belas. Montar um mosaico requer tempo, determinação e paciência: o refazer é constante, até que as partes assumam lugares diferentes. Hoje o mosaico pode ser feito com qualquer material, inclusive imagens fotográficas e cenas teatrais.

[2] A proposta educacionalEducação através da arte”, difundida no Brasil pelas idéias de Read (1982), influenciou sobremaneira as propostas educativas e culturais que buscavam a constituição do ser humano como ser completo, total. Arte não como meta da educação; também como base. Com esse pressuposto, Read propunha a eliminação de fronteiras rígidas entre as diversas disciplinas no sistema educacional e que este se embasasse na educação estética. Read publica inicialmente seu trabalho nos anos de 1940.

[3] Os trabalhos referentes às histórias de vida de professores remontam aos anos de 1980. Tardif menciona a influência das experiências anteriores à formação profissional, mas frisa: “a construção de saberes profissionais [se dá] no próprio decorrer da carreira profissional” (2003, p. 79).