22 de setembro de 2022

3.3 Construção da cena

 

3.3  Construção da cena

 

Feitas essas observações preliminares sobre os sujeitos da pesquisa, passo ao procedimento de análise das entrevistas, que, de início, pareceu-me semelhante a montar um mosaico.[1] Como organizar os dados das entrevistas, peças do meu mosaico? Que dados analisar primeiro? Quais ficariam para depois?

A primeira tentativa foi descrever o diálogo com cada entrevistado/a, mas logo percebi que, se assim procedesse, meu trabalho ficaria enfadonho, pelas idas e vindas. Por isso, resolvi organizar os dados segundo palavras-chave que expressassem meus questionamentos na pesquisa: escolha do curso; experiência docente; contribuição da licenciatura para a prática docente; Proposta Triangular (compreensão da proposta e a prática dos eixos) e leitura de imagens. Nessa seleção e organização do que usar das falas do/as estudantes-professor/as, a cena foi construída.

 

3.3.1  Escolha do curso e experiência docente anterior ao ingresso no curso

 

Por que um/a docente atuante busca se matricular numa licenciatura, e em Educação Artística/Artes Visuais? Nesta pesquisa, tal questão se projetou porque quase metade dos alunos matriculados na licenciatura atuava no magistério.

O entrevistado Mizac afirma ter escolhido por três motivos: porque gosta de arte, já atuava como artista e sentia necessidade de se profissionalizar para ser professor. Dada sua atuação como artista em Uberaba antes de ingressar na licenciatura, Mizac era convidado por diversos setores (Secretaria Municipal de Educação, Casa do Artesão, Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas/sebrae) para ministrar oficinas de arte. Mas, por ser autodidata, sentia falta de certos conhecimentos necessários à docência, a exemplo de conhecimentos sobre como planejar e sobre o ensino. Diz ele:

Ela [uma funcionária da Secretaria Municipal de Educação] falou: “Mizac, me prepara o começo, o meio e o fim do seu trabalho”. Eu pensei: “Caramba! Eu nunca fiz isso!”. Eu nunca tinha despertado para [a importância de] um planejamento. Então ela me orientou.

Mizac não concebia planejamento como organização da ação docente nem como algo que vai além do preenchimento de formulários de controle administrativo; afinal, como diz José Carlos Libâneo (1994), o planejamento guia a execução do trabalho docente; através dele, o professor pode preparar suas aulas com facilidade, visto que pode prever uma seqüência e assegurar a unidade e coerência do trabalho.

A entrevistada Raquel, vinda de uma família de artistas, diz que sempre gostou de artes, recurso que ela empregou em suas aulas como professora: “Eu trazia a arte como um elemento facilitador do processo de aprendizagem, como recurso pedagógico, e não arte pela arte”; isto é, recorria à “arte como aliada” do processo de ensino e aprendizagem. Preocupada com o desenvolvimento humano, Raquel afirma: “[...] a essência [da educação] é tocar a pessoa humana” e que a arte possibilita essefeliz encontro”. Dada a inexistência da licenciatura em Artes em Uberaba naquela época, ela iniciou, várias vezes, o curso de Pedagogiamas diz que sempre desejou o curso de Artes.

Como Raquel, Clésia buscou o curso de Pedagogia para sua formação acadêmica inicial, sobretudo para ter ascensão salarial, incentivada pela coordenadora de seu local de trabalho. Mas, ela sempre desejou ser “arte-educadora”. Clésia mencionou o quão difícil seria estudar forapor exemplo, graduar-se em Artes na Universidade Federal de Uberlândia (a 105 quilômetros de Uberaba). Por isso, abandonou o curso de Pedagogia para abraçar as artes assim que soube da licenciatura em Educação Artística/Artes Visuais no cesube.

Como os/as demais entrevistado/as, Tininha afirmou que, desde criança, gosta de arte. Ela relata, por exemplo, que na infância, passada em São Paulo, sempre admirou trabalhos de arte: “a arte sempre me chamou a atenção”. Mas ela foi cursar outra graduação, pois Uberaba não oferecia a licenciatura em arte: “[...] quando eu decidi fazer faculdade, o [...] mais próximo era História”. Ela relata que, na graduação em História, desenvolveu trabalhos voltados à história da arte e contacom paixãoque, em cada um, ela fazia questão de salientar a presença da arte.

Como se , a experiência docente do/as estudantes-professor/as sujeitos desta pesquisa começa antes de entrarem na academia. A característica comum a todos/as é que ministrarem aulas antes de ingressarem na licenciatura, sejam experiências em diferentes níveis.

Clésia começou a atuar na docência como professora na educação não formal, no atual Centro Municipal de Educação Avançada (cemea), num trabalho que busca ensinar “[...] valores através do convívio, ensinando as regras, com atividades embasadas na arte, dança, uma vivência bem diversificada”. O projeto do cemea lhe possibilitou criar formas de ensinar arte e experimentar técnicas e metodologias. Mas, segundo Clésia, nesta experiência docente faltava orientação para que ela desempenhasse melhor seu trabalho com o ensino de arte. No cemea, Clésia sentia que sua coordenadora não tinha formação suficiente para fornecer suporte e responder a indagações. Ao se sentir perdida e em dúvidas, procurava a coordenação, mas não obtinha resposta satisfatória para seu questionamento: “[...] ela [a coordenadora] sempre dava uma de esquerda e nunca levava a sério”.

Raquel, também com formação inicial de magistério, lecionou Filosofia no ensino fundamental por dez anos e deixou a sala de aula para ser coordenadora pedagógica. Quando conta sua experiência docente antes da faculdade, diz que não ensinava artes: empregava-a como recurso pedagógico. Seu envolvimento com atividades artísticas era constante:

Eu nunca consegui preparar um trabalho que não tivesse uma pincelada de desenho, pintura ou teatro ou uma música. Eu sempre usei estas linguagens artísticas para poder chegar ao outro. [...] Eu trazia a arte como um elemento facilitador do processo de aprendizagem, como recurso pedagógico, e não arte pela arte.

A postura inicial de Raquel no seu trabalho docente deixa entrever influência do filósofo inglês Herbert Read (1982).[2]

Antes de entrar na licenciatura, Mizac tinha experiência docente na prática de oficinas e minicursos de arte. Ele relata que, de início, usou a “intuição” para lecionar para adolescentes em situação de risco:

Minha primeira experiência em que saí do ateliê para ter contato com pessoas, para passar e transmitir alguma coisa, e receber, [...] já peguei de cara o público adolescente especial para trabalhar, do conselho tutelar, [...] com problemas de alcoolismo e tudo. [...] Mas a gente vai apanhando e vai aprendendo.

Com efeito, um professor pode entender de muitos conteúdos, pode até dispor de métodos de ensino; mas as decisões da prática do ensinar são “[...] por si mesmas uma arte, se entendermos por arte uma estruturação pessoal, uma sintonia específica com a situação daquele momento” (dussel, 2003, p. 22). Ensinar exige não só o saber sistemático; também o saber informal; e Mizac reconhece o valor da experiência na construção desse saber.

Tininha iniciou a carreira docente na educação infantil. Historiadora, nunca lecionou a disciplina História: responde pela disciplina Arte em todas as séries iniciais do ensino fundamental na escola particular onde trabalha e onde, antes, ela desenvolveu o projeto sobre arte “Portinari para crianças”; um dos resultados desse projeto foi sua contratação como professora de Arte. Por ter formação em música, também leciona flauta doce na escola.

Posto isso, uma questão se impõe: a formação docente, vista há algum tempo como acumulação de conhecimentos dispostos de forma estática (teoria, livros e técnicas) e desligados de contextos e relações sociais. Começava na entrada na academia e terminava no fim do período acadêmico, quando então se estava apto a ditar conhecimentos para os alunos. Não é segredo que hoje os saberes docentes se vinculam à identidade docente, à experiência de vida e à história profissional. Como esclarece Maurice Tardif:

[...] os saberes são elementos constitutivos da prática docente. [...] articula, simultaneamente [...] diferentes saberes: os saberes sociais, transformados em saberes escolares através dos saberes disciplinares e dos saberes curriculares, os saberes oriundos das ciências da educação, os saberes pedagógicos e os saberes experienciais. Em suma, o professor ideal é alguém que deve conhecer sua matéria, sua disciplina e seu programa, além de possuir certos conhecimentos relativos a ciências da educação e a pedagogia e desenvolver um saber prático baseado em sua experiência cotidiana com os alunos. (tardif, 2003, p. 39).

Assim sendo, então o aprender a ser professor começa antes de se ingressar na academia. Afinal, como diz Miguel Arroyo (2000, p. 124), “as lembranças dos mestres que tivemos podem ter sido nosso primeiro aprendizado como professores. Suas imagens nos acompanham como as primeiras aprendizagens”. A imagem da primeira professora ou do primeiro professor está presente na memória e influencia a atuação como professor.

Hoje a concepção de formação docente supõe um processo contínuo, ao longo da vida e marcado por sobressaltos, pelo inesperado, pelo inusitado. Por isso, a formação de professores precisa ser encarada como percurso, viagem sem parada final. As palavras de Paulo Freire reiteram essas afirmações:

Ninguém começa a ser educador numa certa terça-feira às quatro horas da tarde. Ninguém nasce educador ou é marcado para ser educador. A gente se faz educador, a gente se forma como educador permanente, na prática e na reflexão sobre a prática. (freire, 1986b, p. 61).

Nesses termos, licenciaturas e outros cursos para professores compõem a formação docente. Fundamental é que a formação inicial considere princípios pedagógicos componentes do trabalho futuro do docente: interdisciplinaridade, contextualização e integração de áreas em projetos de ensino. Nas licenciaturas, a condição de aluno prepara o futuro professor; por isso, as situações de aprendizagem da formação inicial deverão promover o desenvolvimento de habilidades que, muitas vezes, esse futuro docente pôde desenvolver (mello, 2000). São as histórias de vida[3] do professor e as experiências vividas por ele no percurso acadêmico, pessoal e profissional que vão ajudar a torná-lo um profissional autônomo, isto é, a consolidar esse perfil. O saber docente é adquirido no contexto de uma história de vida e de sua carreira profissional (tardif, 2003).



[1] Do italiano “mosaico” (mosaico, 1999), trata-se de um embutido de pedras pequenas ou outras peças coloridas dispostas de forma a compor um desenho, uma imagem. Nãolugar predeterminado para cada pedra; o procedimento não é único: pode-se montar várias imagens com as mesmas pedras. Ainda que estas pareçam desconexas, ação do artista as torna belas. Montar um mosaico requer tempo, determinação e paciência: o refazer é constante, até que as partes assumam lugares diferentes. Hoje o mosaico pode ser feito com qualquer material, inclusive imagens fotográficas e cenas teatrais.

[2] A proposta educacionalEducação através da arte”, difundida no Brasil pelas idéias de Read (1982), influenciou sobremaneira as propostas educativas e culturais que buscavam a constituição do ser humano como ser completo, total. Arte não como meta da educação; também como base. Com esse pressuposto, Read propunha a eliminação de fronteiras rígidas entre as diversas disciplinas no sistema educacional e que este se embasasse na educação estética. Read publica inicialmente seu trabalho nos anos de 1940.

[3] Os trabalhos referentes às histórias de vida de professores remontam aos anos de 1980. Tardif menciona a influência das experiências anteriores à formação profissional, mas frisa: “a construção de saberes profissionais [se dá] no próprio decorrer da carreira profissional” (2003, p. 79).

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