24 de dezembro de 2022

Continuação... Considerações finais

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

 

 

Esta pesquisa foi: um reencontro com a artenos trabalhos contemporâneos de Mizac; um mergulho nas palavras — na fala de Raquel; um passeio pelas coresnos depoimentos de Tininha; uma apreciação de formas nas suas multiplicidades — nos trabalhos de Clésia. Mais que isso, esta pesquisa é uma parte ínfima de uma investigação mais ampla sobre a formação de professores no Brasil — sujeitos do conhecimento com saberes peculiares a seu ofício.

Especificamente, tratou da formação de professores de Arte: disciplina incorporada ao currículo escolar após ser disseminada no Brasil entre 1980 e 2000, pelo movimento pós-moderno do ensino da arte, apoiado na premissa de que arte é conhecimento. A imagem artística entrou na escola para ampliar o sentido cognitivo da arte, pois alargar a imaginação é potencializar a cognição (barbosa, 2006b). Na educação, a arte desenvolve formas de pensar, interpretar e construir realidade, graças à exploração de múltiplas respostas e perguntas e às possibilidades de significação que o objeto artístico suscita. Ela amplia o pensamento divergente, pois não tem certo e errado; tem o mais adequado ou menos adequado, mais significativo ou menos significativo, mais inventivo ou menos inventivo (barbosa, 2006b).

A essa investigação maior, subjaz o pressuposto de que a prática docente não é campo propício à aplicação de saberes produzidos por outros; também o é à produção, transformação e mobilização de saberes próprios aos professores (tardif, 2003). Como se sabe, a formação de professores é o momento de aquisição dos saberes docentes; nela, saberes sociohistóricos se alternam com saberes disciplinares e do fazer pedagógico; logo, mudanças nesse nível podem ajudar a superar, na prática, a visão estática e rígida que se tem da educação hoje. Tais mudanças podem se traduzir na revisão de conceitos e concepções que permeiam a estrutura dos cursos (concepção de arte e educação, por exemplo), em sintonia com a contemporaneidade para que a formação acompanhe o presente.

Para esse âmbito convergiram os objetivos desta pesquisa ao enfocar os vínculos entre estudantes-professores/as e a Proposta Triangular para o ensino de arte: saber como a concebem? A põem em prática? E se apenas a reproduzem, ou se também a interpretam? Visto que se propõe como ensino da multiplicidade do pensar, a Proposta Triangular se desenha sobre bases teóricas. Todavia, ao se considerar que a cultura está em transformação constante, por ser produto das relações sociais, e que o conhecimento é construção histórico-social, é necessário que essa proposta seja imaginada em movimentos, também, constantes: que a adaptem à realidade e a tensões culturais que promovam questionamentos e incitem à ação, à busca de novas propostas metodológicas.

Nesses termos, esta pesquisa mostrou como cada personagem a Proposta Triangular: com certa singularidade. A leitura se difere; assim como as releituras e adaptações se distinguem. Não poderia ser diferente. Afinal, como se pode ler nas entrevistas, a prática educativa de cada estudante-professor/a esteve impregnada de história de vida e de referências culturais próprias. Por isso, reafirma-se a concepção de que, se nãoresposta única para o fazer artístico, tampoucopara o ensino de arte. Daí a importância de se adequarem as propostas de ensino segundo seu tempo e suas condições; de se promover um ensino crítico e reflexivo, voltado não à produção artística do aluno.

É preciso ter em mente que o trabalho do professor não é simples transmissão de conhecimentos produzidos por outros; nem se resume a ter competência técnica para adequar conteúdos ao que deve ser aprendido pelos alunos. Os métodos não podem ser vistos como receitas, “tábuas de salvação”. Se o professor busca metodologias e propostas de ensino, muitas vezes sem refletir sobre a validade e possibilidade de concretização destas, ele o faz para sobreviver à criação de avaliação, currículos, estratégias de controle disciplinar do aluno, livros didáticos, programas e outros elementos componentes de um programa institucional escolar.

Todavia, programas institucionais não vão salvar a atividade docente. Antes, é fundamental repensar a educação com um olhar para a mudança e alimentar um olhar crítico sobre a natureza das mudanças em curso. Nesse repensar, ser professor por completo é mais que se adaptar aos novos tempos: é propor mudanças; e seu trabalho exige esforço, pesquisa, projetos, assim como o fazer artístico demanda trabalho, determinação, paciência, ir e vir. Trata-se da “[...] consciência do inacabamento. [...] A consciência do mundo e a consciência de si como ser inacabado necessariamente inscrevem o ser consciente de sua inconclusão num permanente movimento de busca.” (freire, 2004, p. 57).

O curso de licenciatura em Artes Visuais do Centro de Ensino Superior de Uberaba (CESUBE) com o reconhecimento pelo Conselho Estadual de Educação de Minas Gerais – CEE-MG, ainda muito recente (em 2006), pode crescer substancialmente, ao propor debates entre os professores sobre as diferentes metodologias para o ensino de arte e mesmo incentivar a continuidade da formação acadêmica destes como o ingresso em mestrado e mesmo doutorado na área de arte ou na educação.

 

O trabalho docente teve o status de sacerdócio marcado pela vocação; mas, na sociedade pós-moderna — da escola como fábrica, dos alunos como números e das disciplinas e notas como produção —, a lógica racionalizadora o engole: o professor se torna executor de planos e currículos, em vez de participar da elaboração de propostas curriculares; diga-se, em vez de orientá-las para suas necessidades e debatê-las do ponto de vista de quem atua diretamente na sala de aulafim último de tais propostas. Como o professor não decide nem controla seu trabalho, este se reduz à execução de tarefas e à sobrevivência diáriamuito embora a essência do trabalho docente esteja não na legislação, na regulamentação, mas no sentido do ofício: no próprio desejo de entender e compartilhar a vida, de abrir, com os alunos, um caminho para que as coisas tenham sentido (contreras, 2004), inclusive a educação.

Conceber os professores no exercício de sua função como agentes que podem transformar e cuja ação ocorre na interação com outros é reconhecer que, ao transformarem, transformam-se. O professor constrói aulas e, em cumplicidade com alunos e colegas de docência, amplia seu conhecimento. Assim, se conhecer é construção pessoal, é também coletiva: o trabalho docente necessita ser concebido e desenvolvido em conjunto. A prática educativa não pode se reduzir à ação do professor em sala de aula, pois ela ultrapassa os limites físicos desta para integrar uma culturaque se sobrepõem à prática pedagógica e a influencia.

Assim sendo, então um autêntico sentido da educação se esboça quando professores/as participam, fazem valer sua presença singular, compartilham relações, atividades e perguntas, partindo do saber de que “[...] o ensino não está dado a priori, que o encontro pedagógico há de se recriar a cada dia e que as relações não estão predeterminadas” (contreras, 2004, p. 17, tradução minha);[1] de que a educação não é instrumento, mas processo criativo de transformação. Por isso, em cada gesto e em cada opção pedagógica: a construção da capacidade de mudar.

 

 

 

 

 



[1] Tradução:“[…] la enseñanza no está hecha a priori, que el encuentro pedagógico hay que recrearlo cada dia y que las relaciones no están predeterminadas.”

23 de dezembro de 2022

Dissertação de mestrado em EDUCAÇÃO- continuação da publicação

 

3.4.1  Releitura como fazer artístico no ensino de arte

 

Ao se referirem à produção artística, dois estudantes-professores empregam a palavra releitura como parte da Proposta Triangular. Mizac verbaliza assim: “[..] sensibilizou? [...] Ah, beleza! Então, vamos ! Agora é a releitura, onde se vai apurar, especular, investigar e buscar [a obra do artista]”. Para Clésia, a releitura é um dos eixos da Proposta Triangular: “[...] embasada em alguma obra [...], a gente leva para o cotidiano, [...] para o nosso contexto, e chegaria até o caso da releitura, né?”.

Mas, o que autores que discutem o ensino de arte entendem por releitura? Segundo Pillar (2003), reler é ler de novo, é reinterpretar, é recriar sentidos. Barbosa dá vários exemplos de releitura como prática educativa no capítuloLeitura da obra de arte”, de sua obra A imagem no ensino da arte (1996). Para os/as entrevistados/as, a releitura é uma forma de aproximar o aluno das obras de arte; é a proposta de uma nova leitura, um novo olhar sobre algo visto.

Na releitura, um artista, para criar seu trabalho, parte da obra de outro artista, porque os textos se inter-relacionam — intertextualizam — e porque as leituras são múltiplas, isto é, há muitas releituras. A releitura pode ser observada na produção de muitos artistas que reinterpretam obras do passado. Trata-se de prática experimentada por muitos: por exemplo, Pablo Picasso (1881–1973) releu Almoço na relva (fig. 25 e 26), de Édouard Manet (1832–83). Manet buscou idéias na obra O julgamento de Páris (fig. 27), de Rafael (1483–1520), que, por sua vez, recorreu à representação romana clássica para criar sua obra (fig. 28).

Em âmbito nacional, destaca-se o projeto “Releitura” da Pinacoteca do Estado de São Paulo, nos anos de 1980, caracterizado como prática de reflexão. Nessa experiência, os artistas interagiam com obras do acervo da Pinacoteca, recriando-as. Contudo, na educação do ensino de arte, muitos professores ainda encaram a releitura como cópia. E se se pode dizer que esta tem utilidade como forma de aprimoramento técnico, não se pode reconhecer nisso atividade de transformação nem de interpretação, tampouco de criaçãoestágios explorados na atividade de releitura, que estimula a criação com base num referencial, num texto visual, explícito ou implícito. Portanto, a releitura pode ser tomada como diálogo entre textos. Sobre isso, diz Barbosa:

Quando o aluno observa obras de arte e é estimulado e não obrigado a escolher uma delas como suporte de seu trabalho plástico, a sua expressão individual se realiza da mesma maneira que se organiza quando o suporte estimulador é a paisagem que ele ou a cadeira de seu quarto. (1996, p. 107).

O trabalho de Tininha mostra que, na prática do fazer artístico, ela ora se aproxima da cópia, oraliberdade de interpretação. Isso ocorre entre o trabalho com obras e o trabalho de observação do natural: ao estudar uma obra de arte, uma de suas práticas é pô-la para os alunos copiarem.



figura 25.  Almoço na relva

(1863 — óleo/tela, 208 cm x 264,5 cm)

de Édouard Manet

Fonte: arte nos séculos, 1971, p. 1.417.


figura 26. Almoço na relva - uma das releituras

                    que Picasso fez.

Fonte: o mundo da arte, 1966, p. 29.



Figura 27. Detalhe de O julgamento de Páris (1520, óleo sobre madeira 144,8 cm x 193,7 cm).

Fonte: mitologia, 1973, p. 374.


figura 28. Sarcófago romano, mostrando deuses fluviais, século iii d. C.

Fonte: mitologia, 1973, p. 375.




figura 29. Alunos da educação infantil compondo uma produção plástica

baseada em Sol poente (1929), obra de Tarsila do Amaral

Fonte: acervo de Tininha.


figura 30. Alunos da educação infantil desenham com base em A cuca, obra

de 1924 da pintora Tarsila do Amaral

Fonte: acervo de Tininha.

Como resultado desse trabalho (fig. 28 e 29), os alunos se mantêm fieis às cores usadas originalmente por Tarsila; também buscam usar os mesmos elementos e o mesmo posicionamento destes no espaço representativo.

figura 32. Exposição, na Fundação Cultural de Uberaba, de trabalhos

plásticos de alunos da educação infantil de Tininha

Fonte: acervo de Tininha.


O produto é outro quando a prática artística é feita com base na observação do natural (fig. 36, 37 e 38). Tal constatação se apóia no resultado das atividades de “releitura” do quadro O vendedor de frutas (1925), também de Tarsila. Segundo o que me mostrou Tininha, ela levou para a sala de aula várias frutas, e as crianças fizeram desenhos e pinturas “de observação”.



figura 36. Alunos das primeiras séries do ensino fundamental desenham observando uma cesta de frutas

Fonte: acervo de Tininha.


figura 38. Alunos e alunas se concentram no desenho baseado na observação de uma cesta

de frutas - Fonte: acervo de Tininha.

 


figura 40. Pintura feita por discentes com base em desenho resultante da observação de uma cesta de frutas.

Fonte: acervo de Tininha.

figura 41. O vendedor de frutas

(1925 — óleo/tela 108 x 84cm)

Fonte: www.tarsiladoamaral.com.br/obras7.htm.

Ao se referir ao ensino pós-moderno de arte como aquele que implica análise interpretativa integrada com trabalho plástico de construção artística, Barbosa frisa que um aluno dever ser estimulado a escolher a obra que lhe servirá de suporte para compor.

O importante é que o professor não exija representação fiel, pois a obra observada é suporte interpretativo e não modelo para os alunos copiarem. Assim estaremos ao mesmo tempo preservando a livre expressão, importante conquista do modernismo que caracterizou a vanguarda do ensino da arte no Brasil de 1948 aos anos setenta, e nos tornando contemporâneos. (barbosa, 1996, p. 107).

Posto isso, a releitura no ensino de arte deveria ser tratada como citação ou processo de intertextualidade (interação entre textos; superposição de textos ou influência de um texto sobre outro que o toma como modelo ou ponto de partida) para se evitar que a cópia seja considerada a única forma de reler.  Ao reler uma obra — ao elaborar um trabalho expressivo e pessoal —, o aluno que cita toda a obra ou fragmentos como parte de seus conhecimentos estará se apropriando dos possíveis sentidos que a ela suscita e os relacionando com seus conhecimentos pessoais. No mundo atual, professor auxilia o aluno a ressignificar as imagens, interpretá-las e torná-las como fonte de informação.







 



 









16 de dezembro de 2022

Dissertação mestrado em Educação - continuação 3.4 Leitura da imagem no ensino da arte

 

A inclusão da imagem na prática educativa do professor de Arte faz parte da mudança conceitual do ensino da arte. Pode-se dizer que o trabalho com imagens na educação no Brasil foi retomado com a Proposta Triangular, pois se trata de um dos eixos desta. Segundo Célia Almeida (no prelo), Barbosa “[...] divulgou intensamente idéias e propostas metodológicas de autores estrangeiros que tratavam deste assunto [a leitura da imagem] — aliás, trouxe muitos deles para cursos e conferências”.

Durante várias décadas do século xx, a imagem artística ou mesmo outras imagens vinculadas com o mundo adulto estiveram ausentes das práticas educativas do ensino de arte, pois eram consideradas como não educativas; considerava-se que contaminavam a “purezaexpressiva[1] da criança. Permaneceu na escola apenas a imagem produzida pelo aluno. Se na modernidade “[...] a não-intervenção do professor e o rompimento com a imitação de modelos foram considerados como o mais profundo respeito à natureza da criança, da criatividade e da produção artística” (rossi, 2003, p. 16), no contexto pós-modernista se admite que a imagem não prejudica a educação estética; ao contrário, beneficia e é indispensável, a ponto de ter lugar privilegiado no processo educativo. Assim, incluir a imagem artística no trabalho educativo se tornou uma forma de ampliar o repertório cultural de alunos/as, antes restrito à produção pessoal e a sua imersão na cultura de massa.

Como o educador com formação acadêmica anterior à década de 1990 não foi preparado para orientar alunos na leitura de imagem, os novos cursos de licenciatura tentam se adequar à proposta pós-modernista, incluindo no currículo a leitura estética.[2] Além disso, a temática virou alvo de grande preocupação: foram publicados artigos e livros sobre o tema.[3] A Secretaria de Educação Fundamental do Ministério da Educação (sef/mec) lançou, em 1998, um programa de formação continuada com nome de “Parâmetros em ação”, dividido em módulos. Um desses módulos é destinado à gestão da sala de aula e aborda aspectos da organização do trabalho do professor, oferecendo até sugestões de como encaminhar a leitura de imagens. No entanto, esses manuais não chegaram ao professor de Arte em Uberaba: a prática da leitura e apreciação de obras acontece de forma empírica e não há registro de cursos de atualização que enfoquem essa temática.

Nesta investigação, interessei-me em saber que tipo de imagem estudantes-professores/as levam para sala de aula e como conduzem a leitura. Tininha e Raquel trabalham com imagens de obras de artistas brasileiros (a maioria); Clésia leva uma grande diversidade de reprodução de obras de artistas (consagrados ou não, do código europeu ou não). Mizac é o único que afirma usar, também, imagens do cotidiano ou mesmo da cultura de massa (embalagens de leite, panfletos de propaganda eleitoral, dentre outros) — atitude que tem respaldo em Barbosa (2002b) para ela, a arte-educação pós-moderna deve se comprometer com a diversidade cultural; é importante dar atenção à diversidade cultural e “[...] não somente aos códigos europeus e norte-americanos brancos. [...] É necessário que a escola forneça um conhecimento sobre a cultura local, a cultura de vários grupos que caracterizam a nação e a cultura de outras nações” (barbosa, 2002b, p. 19).

Essa autora constata que quase sempre apenas o nível erudito é aceito na escola; raramente as culturas de classes sociais economicamente desamparadas são exploradas em sala de aula (barbosa, 2002b). A exceção ocorre em agosto, quando se comemora o folclore. Nessa época, a cultura popular ganha status na escola. No caso do/das estudantes-professores/as, destaco Raquel, cujo portfolio contém um trabalho que explora a produção de uma artista brasileira ainda pouco divulgada na mídia: Mônica Sartori; também ressalto Mizac, que argumenta em favor da escolha de artistas não consagrados:

Eu gosto de sair destes artistas-padrões, tanto nacionais quanto os de fora... A educação é uma indústria. Eles investem. É Tarsila... Antigamente ninguém falava [nela]. Nada contra estes artistas, Portinari [por exemplo], famosos, internacionais, mas existe uma galera enorme de artistas [muito bons], às vezes até na própria cidade.

                  figura 23. Reprodução de página do portfolio de Raquel

Fonte: acervo de Luciano Carvalho.

Barbosa (1996) trata de alguns procedimentos empregados na leitura de obras de arte — métodos comparativo (como o classifica a proposta de Edmund Feldman) e multipropósito (de Robert Saunders) —, ela assevera que a metodologia o professor escolhe:

A metodologia de ensino da arte usada no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo integra a História da Arte, o fazer artístico e a leitura da obra de arte. Essa leitura envolve análise crítica da materialidade da obra e princípios estéticos ou semiológicos ou gestálticos ou iconográficos. A metodologia de análise é de escolha do professor. O importante é que obras de arte sejam analisadas para que se aprenda a ler a imagem e avaliá-la. Esta leitura é enriquecida pela informação histórica e ambas partem ou desembocam no fazer artístico. (barbosa, 1996, p. 37).

Nesse sentido, foi difícil saber dos/das estudantes-professores/as como encaminham a leitura de imagens. Tive de ler nas entrelinhas de suas falas ou mesmo quando me mostravam fotos.

A orientação para Raquel desenvolver o processo de leitura com seus alunos veio do que depreendeu do material da rede Arte na Escola (rede arte na escola/arte br). Diz ela:

 [...] a primeira pergunta é: “O que você nesta imagem?” Depois: “O que a imagem mostra para você?”. Essas perguntas parecem a mesma, não é? Mas elas trazem respostas diferentes. Interessante isso! No arte br, eu fiquei impressionada de ver isso. O que você está vendo nesta imagem é tudo, tudodesde elementos da composição formal, até o próprio tema, estilo. E depois o que esta imagem mostra para você é o que quer mostrar para você. , pronto. Muda. Muda o referencial. Quer mostrar uma coisa bem alegre, a tristeza; quer falar que existe muito menino abandonado na rua.

Lançado em 2003, o material arte br foi elaborado por professores e especialistas em arte-educação[1] a fim de subsidiarem os professores que lidam com a leitura de imagem em sala de aula usando obras de artistas brasileiros. O material, também, pretende integrar o projeto de educação continuada do Instituto Arte na Escola, que resulta da institucionalização do projeto Arte na Escola, criado em 1989, pela Fundação Iochpe. Nesse material, a leitura de imagem se fundamenta na teoria semiótica greimasiana,[2] que entende a arte como linguagem e o objeto artístico como texto visual. Conforme instruções do material, a leitura visual deve obedecer à seguinte seqüência:

O olho, o que ? O olho, o que percebe? De olho no artista, no Brasil e no mundo. O olho que conta histórias. O olho que pensa, a mão que faz, o corpo que inventa. Provocando olhares. O olhar que dialoga. De olho no museu. O olho que refaz o percurso. Linha de vida, tempo da obra. Chave de palavras. O olhar que descobre. (arte br, 2003, s. p.).

 

figura 24. Reprodução de página do portfolio de Raquel

Fonte: acervo de Luciano Carvalho.

Raquel afirma que a leitura de imagens importa porque estimula o aluno a ter visão ampla: “Eles falam assim: ‘Vi o sol. Olhe lá um brilhinho! Nossa! Eu vi muita cor laranja’. Outro fala assim: ‘Eu vi muitas linhas retas, redondas. Eu vi que não entendi nada desta imagem!’”.

O trabalho de Mizac com imagens inclui, a princípio, a opinião dos alunos sobre a obra: “gostei; não gostei; não gostei porque...; gostou por que?; achei estranho, bizarro; vi algo parecido”. Ele afirma que, depois, trabalha muito com leitura de imagem e cita que, quando mostrou aos alunos os artistas de Goiás Siron Franco e Antônio Poteiro, desenvolveu um exercício de leitura de imagens em forma de prova. Em sua descrição, identifico passos da leitura de imagem propostos por Edmund Burke Feldman:[1] descrição, análise, interpretação e julgamento. Mizac, entretanto, troca o último passo proposto por Feldman de maneira mais criativa e com sua marca:

[Utilizo] aquele processo, analisando, descrevendo interpretando e finalizando. [...] A prova estava perfeita. Para quê eu vou mexer nesta prova? Se ela está perfeita! A última pergunta era para criar um slogan ou uma peça publicitária onde você colocaria esta imagem e por quê. [Foi] a pergunta mais difícil porque envolveu o pensar. Foi valiosa, porque surgiram coisas interessantes em relação à leitura. (Grifo meu).

A leitura de imagens permite construir conhecimentos visuais. Não se pode esquecer: o olhar de cada leitor terá influencias de suas experiências, lembranças, fantasias e interpretações. Não um modo verdadeiro, tampouco uma maneira linear, única de ler.

O nosso olhar não é ingênuo: ele está comprometido com nosso passado, com nossas experiências, com nossa época e lugar, com nossos referenciais. Não há o dado absoluto e não se pode ter uma única visão, uma leitura, mas se deseja lançar múltiplos olhares sobre um mesmo objeto. (pillar, 2003, p. 16).

A fala de Tininha revela uma proposta de leitura visual distinta:

[...] antes de mostrar as imagens, eu falo um pouco da pessoa que fez a imagem, mas em forma de história, para eles entenderem. Eu começo a contar história e começo a falar das cores que o artista usa, o jeito que ele trabalha, [e depois é que] mostro a figura a eles.

Ela argumenta que assim fica “mais familiar”; afirma que, ao dirigir o olhar dos alunos para uma narrativa pessoal, quando ela lhes mostra a imagem, “[...] já olham de uma outra forma” e acreditam que, se “eu não contar uma história antes, eles não vão entender”.

Cabem questionamentos: não estará Tininha lendo pelo aluno? Não estará dando sua interpretação da obra para o aluno? Será que sua formação inicial em História não a conduziu a tal prática? A propósito da importância do ato de ler, recorro a Freire (1989), para quem o professor não ensina “o que ler”, pois não há uma leitura correta; há, sim, sentidos que o leitor constrói conforme seu conhecimento de mundo e seus interesses no momento. Isso porque ler pressupõe percepção, interpretação pessoal; é um ato de conhecimento e, sobretudo, criador.

Como ler, o ato de ver é processual: olha-se para depois se ver. Não se vê apenas a parte física de um objeto a ser focalizado pelos olhos; vêem-se, também, suas relações com o sistema simbólico, para se lhe atribuírem sentidos, pois

A leitura de obra de arte envolve o questionamento, a busca, a descoberta e o despertar da capacidade crítica dos alunos. As interpretações oriundas desse processo de leitura, relacionando sujeito/obra/contexto, não são passíveis da redução certo–errado. [...] É importante ressaltar que o objeto de interpretação é a obra, e não o artista, não se justificando processos adivinhatórios, na tentativa de descobrir as intenções do artista. (rizzi, 2002, p. 67).

Com efeito, levar imagens para a sala de aula e manter idéias totalizantes e homogeneizadoras das grandes metanarrativas é o grande equívoco dos professores (almeida, no prelo). Com isso, ante a dificuldade em escutar a obra abertamente, sem pré-conceitos, e assim subverter o que está dado como certo, não permitem a alunos e alunas fazerem sua escuta, para que todos (docente e discentes) com suas vozes ajudem a construir os sentidos da obra coletivamente.



[1] Passos propostos por Feldman: descrição — sugere-se fazer lista detalhada de objetos e formas presentes na obra, descrevendo tudo, para ajudar o expectador a observar a obra mais longamente e descobrir coisas ou detalhes não captados antes; análiseobservação do procedimento do que vemos na obra; estuda-se a relação de tamanho e de localização das formas no espaço, a relação entre cor e textura: os elementos estéticos da obras; interpretaçãobaseado nos elementos descritos e analisados da obra, o observador vai significar o trabalho de arte: usam-se palavras para descrever idéias que explicam as sensações e os sentimentos que se têm diante do objeto de arte; julgamento — decide-se sobre o valor estético da obra: é o momento de explicitar as razões por que o trabalho em estudo é bom ou ruim (pedrosa , 2002).


 



[1] Ana Amélia Bueno Buoro, Beth Kok, Bia Costa, Eliana Braga Aloia Atihé, Lucimar Bello Pereira Frange e Moema Martins Rebouças.

[2] Teoria da significação, a semiótica greimasiana enfoca a construção do sentido em diversos textos e no mundo como texto. A significação é estudada à luz da fenomenologia, da lingüística e da antropologia





[1] O termo é empregado por artistas românticos, contrários a toda regra imposta pela tradição clássica.

[2] No caso do curso de Educação Artística/Artes Visuais do cesube, o estudo da leitura de imagens acontece nas disciplinas Estudo da forma e da composição e Metodologia do ensino de artes visuais, respectivamente, no segundo e terceiro anos do curso.

[3] Ver, por exemplo, Pillar (2003) e Rossi (2003).