22 de setembro de 2022

3.3.2 Contribuição da licenciatura em Educação Artística/Artes Visuais para a prática docente

 

3.3.2  Contribuição da licenciatura em Educação Artística/Artes Visuais para a prática docente

 

A licenciatura em Educação Artística/Artes Visuais poderia contribuir para a prática docente de estudantes-professores/as? Procurei reconhecer tais contribuições na fala dos/as entrevistados/as sujeitos desta pesquisa.

Para Clésia, a contribuição se traduziu em saberes disciplinares. Em sua experiência com arte na educação não formal, ela se sentia insatisfeita com o parco conhecimento sobre arte adquirido no magistério; sentia carência de algo mais para organizar sua atuação em sala de aula. Ela comenta sua experiência docente — construída na vivência de mundo, na prática, sem fundamentação teórica — e como os conhecimentos da academia organizaram seus saberes práticos. Clésia foi incisiva ao esclarecer como o curso modificou sua maneira de dar aulas de arte:

Antes da faculdade, eu experimentava; tinha minha vivência de mundo e levava [a arte] para a sala de aula, mas sem um eixo, sem direção. Eu me sentia perdida. Agora, na faculdade, a gente sabe situar os fazeres no tempo, a gente sabe encaminhar melhor qual o objetivo, o que a gente quer para cada atividade.

Clésia sempre buscou inovar sua prática mediante cursos. Freqüentou a formação continuada no Centro de Formação de Professores da Prefeitura Municipal de Uberaba (cefor), onde se achou como arte-educadora: “sempre gostei de trabalhos artísticos e [no cefor] fiquei sabendo que era importante saber mais sobre arte e educação”. A fala de Clésia é significativa ao se ter em mente as reflexões de Tardif (2003). Com Saberes docentes e formação profissional, esse autor nos faz pensar nos saberes dos professores em seu trabalho e sua formação. Trata-se de saberes sociais, por serem partilhado por pessoas e construído por elas, pois o professor sozinho não define seu saber profissional: este se liga a uma situação de trabalho com outros, num ambiente de conhecimento e na sociedade. Se são aplicados saberes docentes distintos na execução do trabalho, é por causa da ação docente, visto que incluem o saber sobre o trabalho, assim como o saber usado para concretizá-lo.

Para Tardif (2003), vários saberes compõem o “saber docente”, dentre estes, o disciplinar, o pedagógico e os experienciais. O saber disciplinarou do conteúdo — refere-se ao domínio da área de especialização do professor, à compreensão da forma de pensar e entender a construção do conhecimento de sua disciplina e à discussão e organização deste. O saber pedagógicoou saberes da formação profissional (das ciências da educação e da ideologia pedagógica) — referem-se aos conhecimentos de princípios, objetivos e estratégias usados pelo professor para organizar e desenvolver sua disciplina e seu domínio de sala de aula. Os saberes pedagógicos são concepções originárias de reflexões sobre a prática educativa no sentido amplo do termo. Este conhecimento vai além de sua área específica:

Em suma, o professor ideal é alguém que deve conhecer sua matéria, sua disciplina e seu programa, além de possuir certos conhecimentos relativos às ciências da educação e a pedagogia e desenvolver um saber prático baseado em sua experiência cotidiana com os alunos. (tardif, 2003, p. 39).

A busca por conhecimentos se mostra na fala de Mizac, sob a forma de pesquisa. Antes de entrar na faculdade, ele esculpia em pedra-sabão e fazia montagens com objetos cotidianos — sempre confiante em sua sensibilidade e intuição pessoal. Comenta que, por muito tempo, esteve “preso ao ateliê” e sentiu necessidade de “ter contato com mais pessoas na rua”; também procurou dar aulas, mas a atividade docente era exercida empiricamente. Nesse caso, a reflexão foi proporcionada pelo curso. Diz ele,

[...] a faculdade [...] ajuda muito. Primeiro, ela me faz pesquisar, me põe a ler, tanto é que minha literatura [leitura] é em função da faculdade. Tem que ser assim. Sou obrigado a pesquisar... As pesquisas vão me levando a cada dia.

Para Mizac, a dimensão do estudo acadêmico e mesmo a pesquisa em arte vão se mostrando de suma importância: ele reconhece que o professor de Arte tem de estudar e ter conhecimentos específicos. Com efeito, Tardif (2003) afirma que os professores são atores e sujeitos do conhecimento, por isso é preciso parar de pensar neles unilateralmente, como se fossem técnicos que aplicam conhecimentos produzidos por outros (pesquisadores, peritos em currículos). Essa visão redutora desconsidera o professor como sujeito ativo, crítico — “[...] pesquisador da educação — [...] um ator que desenvolve e possui sempre teorias, conhecimentos e saberes de sua própria ação” (tardif, 2003, p. 235); assim como desconsidera sua prática como espaço de produção teórica.

Cada professor tem seu jeito de ser professor e de aprender a sê-lo, sua forma de conduzir a sala de aula e se relacionar com alunos, seu modo de usar recursos pedagógicos e enfrentar problemas diários. Essa peculiaridade, Nóvoa chama de “espécie de segunda pele profissional” (nóvoa, 1997, p. 19); Tardif, de saber experiencial: um saber vivido na individualidade, ligado às funções do professor — que, no cumprimento delas, é mobilizado, modelado, adquirido. Esses saberes surgem da experiência e são por ela validados; materializam-se na experiência individual e coletiva, em forma de habitus[1] e habilidades, de saber-fazer e saber-ser. Portanto, o saber docente é prático, interativo, sincrético, heterogêneo, aberto e personalizado. É temporal: transforma-se e constrói-se na história.

Posto isso, deduz-se que ensinar é mobilizar saberes, usá-los de novo no trabalho para ajustá-los e transformá-los pelo e para o trabalho. Segundo Tardif,

Todo saber implica num processo de aprendizagem e de formação e, quanto mais desenvolvido, formalizado e sistematizado, é um saber, como acontece com as ciências e os saberes contemporâneos, mais longo e complexo se torna o processo de aprendizagem, o qual, por sua vez, exige uma formalização e uma sistematização adequadas. (2002, p. 35).

Nesse sentido, reafirmo: a prática profissional docente não é espaço de “aplicação” de saberes universitários; é espaço de ação inteligente, emocional, sobretudo marcada pelo selo da expressividade da pessoa que age. Esse papel de agente pedagógico não pode ser entendido à margem da condição humana; “na educação, as ações são, pois, reflexo da singularidade daqueles que a realizam” (sacristán, 1999, p. 32).

No caso de Raquel, a licenciatura contribuiu na medida em que enriqueceu seu saber disciplinar e ajudou-a a construir seu conceito de arte como disciplina. Antes, ela a concebia como instrumento, recurso pedagógico; agora, sente que pode ser mais que isso:

Eu sinto que o curso me trouxe um conhecimento teórico maior. Acho que consegui construir um entendimento sobre autonomia da área de conhecimento da arte, que eu não tinha. Era como uma área de conhecimento que pode viver sozinha, que tem autonomia; não que eu ache que as coisas consigam viver tão afastadas assim. Para mim depois do curso, a arte ganhou status, é soberana. Como poderá ser para o lingüista a língua portuguesa, a matemática para o matemático. Ela é soberana assim, ela caminha por ela, pelas próprias pernas, entendeu? Mas ela é soberana que consegue abraçar, abraçar a filosofia, a sensibilidade do outro... Modificou a maneira de agir, a maneira de sentir, a maneira de fazer, porque hoje eu tenho um conhecimento que não tinha.

As palavras de Raquel deixam entrever que o curso do cesube dissemina idéias pós-modernistas de arte-educação, pois a arte é considerada como parte da cultura, embora tenha dinâmica própria; noutras palavras, a arte é objeto de investigação.

No caso de Tininha, a contribuição mais importante do curso para sua formação converge para a idéia de que o saber docente é um saber social, porque partilhado e construído coletivamente; ela reconhece a importância da troca de experiência entre alunos/as do curso:

Lá na minha turma, cada um vem de um lugar. Nem todos são artistas e [...] alguns trouxeram alguma bagagem de coisas que eu não sabia. Então, cada um vai lá e mostra uma coisa bacana. A gente acaba se interessando e acaba trocando, ensinando.

Com efeito, a escola é espaço/tempo de encontro entre gerações de pessoas, de socialização, de interação, de formação e de aprendizagem das artes de ser. Formar não é tarefa de um agente só; diz-se que alunos e professores se formam mutuamente, na troca de conhecimentos e histórias de vida. Para Freire (2004, p. 22), “[...] ensinar não é transferir conhecimentos, mas criar possibilidades para sua produção ou sua construção”. Transferir conhecimentos se justificava tempos atrás, pois a escola era um dos poucos lugares onde o saber era elaborado. O contexto atual tem vários espaços de informação que atribuem à escola e ao professor o papel de gerenciar e significar o conhecimento; o professor — a docência — deixa de ser transmissor de conhecimento para assumir a tarefa de organizar o conhecimento e o trabalho do aluno na produção e construção do conhecimento.

Como se pode deduzir do caso de Tininha, que já atua na docência, o saber docente é social por ser adquirido, também, em diferentes contextos, inclusive entre colegas: o conhecimento pode emanar do professor, da sala de aula onde é ela aluna, assim como da interação com colegas de turma e da socialização profissional. Afinal — assevera Freire (1996, p. 68) —, “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. O aprender/ensinar ocorre “[...] numa rede de interações com outras pessoas, num contexto onde o elemento humano é determinante e dominante e onde estão presentes símbolos, valores sentimentos, atitudes” (tardif, 2003, p. 50). Por acreditar na colaboração entre professores (como entre colegas de Tininha já atuantes como professores), deduzo que, também, ela acredita na troca de experiências e que esta faz parte da aquisição do saber docente entre professores. “Ainda que as atividades da partilha não sejam consideradas como obrigação ou responsabilidade profissional, pelos professores, a maior parte deles expressa a necessidade de partilhar sua experiência.” (tardif, 2003, p. 53).



[1] Esse termo é empregado pelo pensador Pierre Bourdieu (1994, p. 61), para quem se trata de um “[...] sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser objetivamente ‘reguladas’e ‘regulares’, ser mero produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e do domínio expresso das operações necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente”.

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