9 de junho de 2022

parte 2 - Ensino de Arte

 2  ENSINO DE ARTE

  

Acredito que as práticas educativas em arte surjam de mobilizações sociais, filosóficas, artísticas, estéticas e que, destas, tenham influências; também acredito que as propostas metodológicas traduzem, obrigatoriamente, tais mobilizações e influências. No século xx, várias concepções pedagógicas coexistiram, a exemplo da livre expressão (modernista) e da pós-modernista. Retomo-as aqui porque a Proposta Triangular de ensino de arte foi elaborada como proposta metodológica pós-modernista, em contraposição à concepção modernista de então.

 

2.1  Concepções de ensino de arte

 

No século xx, o ensino de arte se transformou em razão de mudanças no ensino escolar de arte. É provável que grande parte delas se associe ao fato de que, também, as concepções de ensino de arte se vinculam ao entendimento que a sociedade tem dos artefatos artísticos. Por exemplo, nas primeiras décadas do século, estes eram considerados como resultado da máxima expressão individual: priorizavam-se a originalidade e o total desapego às regras acadêmicas; eram, pois, concebidos apenas como expressão do indivíduo, como se pudessem ser desvinculados de um contexto, seja cultural, político ou social. Numa visão própria do Romantismo (movimento artístico do século xix), supervalorizava-se a emoção e enfatizava-se a sensibilidade inventiva, com predomínio do individualismo como expressão subjetiva. Atitudes como a recusa à influência externa na produção artística se tornaram constantes, pois se acreditava que a criação original surge da força interior. Como resultado, produtor e expectador se eximiram de fazer uma leitura crítica das obras produzidas.

Nesse período, os estudos sobre a psicologia infantil avançaram, provocando uma crescente valorização da personalidade e criatividade infantis. A produção artística da criança, que até então tinha suas especificidades ignoradas, passou a ser reconhecida pelas qualidades estéticas. A arte infantil passou a ser vista como passível de apreciação, e alguns críticos chegaram mesmo a considerar algumas produções artísticas infantis como obra de arte.[1] Seja pela livre exploração da cor, das formas e do espaço, seja pela liberdade como expressa a fantasia, a produção artística da criança influenciou a produção de artistas e movimentos ligados às vanguardas artísticas. Franz Cizek ficou conhecido como o pai da arte infantil: orientou a produção das crianças em seu curso de “arte jovem” em Viena, no início do século xx. Os trabalhos de seus alunos entusiasmaram alguns artistas, que “[...] viam na arte infantil a essência do que vinham procurando para seu próprio trabalho” (wilson, 1990, p. 56).

Essa valorização da arte infantil impulsionou o aparecimento de vários ateliês onde as crianças ficavam livres para produzir sem interferência do adulto. No Brasil, o Movimento das Escolinhas de Arte[2] influenciaria o ensino de arte nas escolas regulares. O método tradicional de cópia de modelos foi questionado: se — como se acreditava — a criança é criativa por natureza, a escola deveria ser local onde o aluno pudesse ser encorajado a se expressar com liberdade. Os estudos sobre psicologia infantil suscitaram discussões acerca da necessidade de haver uma educação mais criativa; defendia-se até o espontaneísmo — contrário, portanto, a qualquer intelectualismo na formação artística da criança. O educador francês do século xx Arno Stern defendia: “o educador deve abster-se de pensar em tudo que o estudo teórico lhe ensinou e ir ao encontro da criança, com a sensibilidade e não com a sua ciência” (1974, p. 16). Nesse entendimento, o professor não poderia interferir no olhar infantil, mas deveria compreender o que a criança pode produzir em seus diferentes estágios de desenvolvimento.

A idéia de auto-expressão penetrou na educação artística, e o emprego de imagens produzidas por adultosobras de arte — no ensino artístico foi considerado como nocivo: acreditava-se que poderiam influenciar a criança e lhe inibir a criatividade:

[...] a apresentação de modelos deixou de ser considerada como educativa e, conseqüentemente, a imagem foi banida do ensino da arte. [...] passou-se a zelar para que o aluno não fosse contaminado pela imagem. [...] Durante os anos do Modernismo, a não-intervenção do professor e o rompimento com a imitação de modelos foram considerados como o mais profundo respeito à natureza da criança, da criatividade e da produção artística. (rossi, 2003, p. 14).

O ensino de arte baseado na expressão do eu, na liberação emocional foi a tônica de muitos educadores na primeira metade do século xx. O filósofo e educador austríaco Victor Lowenfeld (1903–1960) enfatizou, em seu livro Desenvolvimento da capacidade criadora (cuja primeira edição é de 1947), a importância da arte na educação para garantir o desenvolvimento integral do indivíduo nos aspectos social, emocional, perceptivo, físico e psicológico (lowenfeld; brittain, 1977). Lowenfeld propôs a valorização da auto-expressão e auto-identificação como forma de desenvolver a conscientização dos sentidos para uma aprendizagem integral. Noutro livro — A criança e sua arte: um guia para os pais (1977) —, o autor recomenda a não-interferência no trabalho artístico das crianças (o subtítulo deixa entrever como ele desenvolve suas idéias). No capítulo “Convém ajudar a criança em sua arte”, Lowenfeld esclarece que:

Poderíamos distinguir dois tipos de ajuda aos nossos filhos. Por exemplo, Maria diz: “Mamãe, não sei como me desenhar, a mim mesma, colhendo flores”. Se sua mãe lhe mostra “como desenhar”, estará impondo sua imaginação de adulto à criança. Em outras palavras, estará expondo à filha como colheria flores, ao passo que a criança poderia ter uma experiência muito diferente, relacionada com a coleta de flores. [...] Colher flores pode representar uma sensação diferente, tanto na mãe quanto na filha. Para a mãe pode representar uma sensação de cansaço ou de dor nas costas [...] enquanto para a menina pode demonstrar esforço de seus braços ou de suas mãos.[...] Maria não encontraria alívio ou escape por intermédio dos desenhos feitos por sua mãe. Tais desenhos não lhe transmitem sentido algum. (lowenfeld, 1977, p. 29).

Influenciada pelo pensamento de Lowenfeld, a educação artística passou a ser concebida como desenvolvimento de habilidades motoras, domínio de técnicas e, sobretudo, desenvolvimento de habilidades criativas. O foco de atenção do ensino artístico deixou de ser o produto final para se concentrar no processo, pois o que se considerava era a expressão da criança e do jovem no percurso de seu desenvolvimento.  O maestro e professor universitário Ricardo Tacuchian sintetiza esse pensamento: “a educação artística visa basicamente o homem e não a arte. As diferentes linguagens artísticas são meras opções para a ativação dos mecanismos de criação, reflexão e fruição (1981, p. 61). Como conseqüência desse entendimento, o ensino artístico passou a enfatizar uma infinidade de técnicas de materiais e aprendizagem.

O método da livre expressão levou numerosos professores a considerarem o desenvolvimento da criatividade como questão essencial no ensino de arte. Os objetivos da aula se centravam no desenvolvimento do espírito de interrogação e na abertura a experiências, assim como no desenvolvimento da autoconfiança para promover a criatividade dos alunos. Com freqüência, usavam-se exercícios que se supunham úteis ao aluno no que se refere ao desenvolvimento de uma fluência criativa. A “livre expressão conduzida” (martins, 1979, p. 28) era a proposta de atuação para o professor de arte, que deveria incentivar, sem interferir, a produção artística do aluno; também sua atuação pedagógica deveria estimular a experimentação. As noções de certo ou errado foram avaliadas como algo fora de propósito, pois o produto final dependeria do método criador. Mais que o resultado estético, importava o percurso da criação: “a livre expressão leva o indivíduo à auto-expressão e, assim, cada vez mais profundamente, o indivíduo ganha em liberdade, em flexibilidade, fazendo da arte sua descarga emocional” (martins, 1979, p. 29).[3]

Contudo, se antes a educação se preocupava só com o produto final em consonância com os padrões do adulto (antes do século xx), na livre expressão o descaso com o produto final é exagerado. Disso resultou uma concepção de que a produção artística, de fato, expressava o interior “puro” dos alunos, mas cuja qualidade estética era discutível, sobretudo porque essa produção era vista como qualquer coisa, independentemente do aspecto estético. Ainda assim, a prática educativa que propunha o desenvolvimento da criatividade passou a dar o tom da educação. Várias metodologias foram incrementadas para o cultivo do pensamento criativo, e o método da resolução de problemas foi visto como meio para desenvolver a originalidade. A fim de usar técnicas que desafiassem o pensamento criativo, o professor buscava aquelas que possibilitassem explorações sensoriais e imaginativas. Feito um animador, ele deveria formular perguntas que gerassem abundância de idéias pela associação.

Essa concepção do artefato artístico como resultado da máxima expressão individual — seja oriundo da produção infantil ou não — deixou marcas no ensino de arte: a baixa qualidade das atividades pedagógicas em arte e o produto daí resultante contribuíram para que a disciplina fosse encarada como mera atividade e vista com descrédito. Essa concepção perdurou até segunda metade do século xx, quando o ensino de arte passa por outra mudança conceitual motivada, dentre outros fatores, pela nova forma de conceber os artefatos artísticos, agora influenciada pela antropologia, sociologia e pedagogia e pelo surgimento de teorias sobre a inteligência.

Na reestruturação e unificação do emocional com o racional, novas transformações conceituais modificam o pensamento sobre o ensino de arte. A produção artística, os artefatos de arte não são mais vistos separadamente da produção cultural de um povo, e sim como constituinte de sua cultura. Na visão antropológica, a produção artística, encarada comofazer especial” (dissanayake 1988 apud richter, 2003, p. 22), é também pensada como comportamento fundamental do ser humano. Tal visão amplia os horizontes de compreensão da arte e permite, afinal, entender as atividades e os artefatos artísticos das pessoas como expressão motivada esteticamente. A arte é, também, forma de produção e reprodução cultural passível de uma compreensão mais clara e precisa à luz de seu contexto de origem e recepção Diz a autora, que nas artes, tem-se a representação simbólica dos traços espirituais, materiais, intelectuais e emocionais característicos de dado grupo social e de seu modo de vida; como constituinte da cultura, a arte situa o indivíduo em seu grupo social; pela arte, é possível entender a cultura de um país. Por isso, não estudá-la como linguagem produtora de sentidos é ter um conhecimento parcial de um povo, de uma cultura.

Na educação, a arte se torna meio para a expressão pessoal e, como cultura, importante instrumento de identificação. Na concepção de ensino de arte “pós-modernista”, a arte não é expressão; é também cultura e um importante instrumento para identificação cultural. A concepção pós-modernista tem compromisso com a cultura e com a história. Não se pretende desenvolver uma “[...] vaga sensibilidade nos alunos por meio da arte, mas [...] se aspira a influir positivamente no desenvolvimento cultural dos estudantes pelo ensino/aprendizagem da arte” (barbosa, 2002b, p. 17).

Na década de 1980, as metodologias que orientaram o ensino de arte começaram a considerá-la não apenas como expressão, mas também como cultura; apontaram a necessidade de haver uma contextualização histórica, assim como mudanças, para que esse ensino desocupasse sua “[...] posição marginal no currículo escolar” (pillar; vieira, 1992, p. 3). A fim de se construir uma abordagem aprofundada e abrangente para elevar a qualidade do ensino da arte nas escolas, muitas pesquisas começaram a ser desenvolvidas. Nos eua, liderado por Elliot Eisner (da Ohio State University), o grupo da Getty Center for Education in Arts desenvolveu a proposta denominada “Discipline-Based Art Education”/dbae (arte-educação como disciplina); na Inglaterra, o artista educador Richard Hamilton (Newcastle University) e os colegas Harry Thubron, Victor Pasmore, Richard Smith, Joe Tilson e Eduardo Paolozzi associaram, ao ensino de arte, os princípios do design.

Seguiu-se que a criatividadebandeira da livre expressão — deixou de ser preocupação exclusiva da educação artística para ser entendida como objetivo a ser atingido em todas as disciplinas. A educação dos sentidos para a apreciação e leitura de trabalhos artísticos passou a ser concebida, também, como forma de desenvolver a fluência, a flexibilidade e a originalidade; numa palavra, colabora para o desenvolvimento da criatividade entendida como expressão que tem influência das formas culturais, isto é, baseia-se na tradição. O ato criador não é fortuito: requer relação, ordenação, configuração e significação. “Todo ato de criação é um ato de compreensão que redimensiona o universo humano.” (ostrower, 1995, p. 217).

A compreensão de que a cultura influencia o processo criativo permitiu entender que a criança poderia ser vista não apenas como produtor, espontâneo, mas também como fruidor em potencial. Mais que isso, permitiu ver o quanto o ensino de artes escolar estava defasado em relação à produção contemporânea de arte. Enquanto nas escolas eram distribuídas aos alunos folhas com corações a serem coloridas para o Dia das Mães ou folhas em branco para umdesenho livre”,[4] a produção contemporânea de arte exigia reflexão e participação do público e não era mais objeto de identificação passiva. Embora a arte seja produto da expressão e imaginação humana, professores e pesquisadores argumentavam que ela não se separa da economia, da política e da cultura.

O contexto favorecia o surgimento de outras concepções para o ensino da arte e sua importância na educação formal porque a arte passou a ser vista como algo

[...] não [...] apenas básico, mas fundamental na educação de um país que se desenvolve. Arte não é enfeite. Arte é cognição, é profissão, é uma forma diferente da palavra para interpretar o mundo, a realidade, o imaginário e é conteúdo. Como conteúdo, Arte representa o melhor trabalho do ser humano. (barbosa, 1996, p. 4).

Na concepção pós-moderna, o ensino da arte se compromete mais com a cultura e a história; e ensinar arte pressupõe que o conhecimento em arte ocorra na intersecção da experimentação, decodificação e informação. Neste momento, busca-se superar a concepção de que o uso de imagens na educação artística é danoso. É refutada a crença de que a criança tem uma “virgindade expressiva” (barbosa, 1997, p. 10), que obrigava os educadores a evitarem o uso de imagens ou obras de arte na sala de aula; a imagem entra na aula para ser lida e relida. Por isso, o ensino da arte agora tem a função de preparar o aluno para entender o discurso visual e compreender/avaliar todo tipo de imagempreparação improvável no ensino baseado no espontaneísmo — porque a prática de ler imagens leva a uma leitura mais ampla: social, cultural e estética. Também neste momento uma variedade de conceitos sobre arte apaga a separação entre arte maior e arte menor. Se nas escolas do passado a cultura erudita tinha lugar, nas de agora o compromisso com a diversidade cultural é “[...] enfatizado pela arte-educação pós-moderna. Não mais somente os códigos europeus e norte-americanos brancos, porém mais atenção à diversidade de códigos em função de raças, etnias, gênero, classe social, etc.” (barbosa, 2002b, p. 19).

Dito isso, depreende-se a defesa de uma educação estética, ética e cultural, porque ela orienta uma educação pós-moderna para o ensino de arte; uma educação intelectual, sobretudo humanizadora, em que a arte possibilite ao indivíduo desenvolver a capacidade criadora, a percepção e a imaginação para interferir na realidade. Cruciais para esse ensino da arte pós-moderno são os encaminhamentos educativos das aulas de arte: entendidos como metodologias de ensino e aprendizagem em arte, isto é, um conjunto de idéias e atos baseado em tendências pedagógicas e concretizadas em projetos ou no próprio desenvolvimento das aulas. Na metodologia, muitos componentes se articulam: objetivos educacionais com conteúdos escolares, função do professor e forma de avaliação. Resumem idéias de como devem ou deveriam ser as práticas educativas em arte baseadas em propostas educativas e tendências pedagógicas. Tais encaminhamentos educativos visam ajudar os alunos a compreenderem o objeto de ensino — aqui, a arte.

Coexistem vários métodos: livre expressão, sugestão de tema, solução de problemas, e “metodologia triangular”. O método da sugestão de tema ou assuntoforte influência da obra de Lowenfeld — é a condução de toda atividade de sala de aula partindo de um tema, na maioria das vezes, escolhido pelo professor. Dominou a formação docente nos anos de 1970; abarcava o conceitual, outros componentes mentais, na maioria das vezes, não eram desenvolvidos. A proposição temática se limita ao desenvolvimento da memória perceptiva; à medida que se desvincula da presentificação do objeto tratado na obra.

Dar um tema para ser desenhado é apelar para a memória perceptiva, conduzindo a uma imagem preponderantemente conceitual, sobrepondo a visão corpórea do fato ou objeto, e ocasionando a dominância do intelecto sobre o sensível. (barbosa, 1978, p. 47–48).

Desenvolvido por Robert Saunders (barbosa, 1978), o método da solução de problemasou Processos Mentaisainda se preocupava com desenvolver a criatividade pela seleção de atividades que exercitem e mobilizem a parte cognitiva e a afetiva. A atividade artística selecionada pelo professor deverá promover um processo mental específico desenvolvido por fases: análise ou abstração; habilidade para redefinir ou rearranjar; flexibilidade e fluência; coerência de organização; originalidade e síntese.

Nesse período (1975), Ana Mae Barbosa — a princípio defensora do Método dos Processos Mentais — dedicou-se à construção de uma proposta teórico-metodológica que integrasse o fazer artístico com a contextualização e a apreciação artística. A proposta revela uma preocupação com um trabalho não centrado tanto no fazer artístico e que levasse à apreciação e ao conhecimento histórico-estético das obras de arte (foerste, 1996). A preocupação era usar imagens na sala de aula. Seus esforços resultaram na Proposta Triangular para o ensino da arte como metodologia. Para se compreender com mais precisão uma proposta que defende a contextualização como objeto de estudo no ensino de arte, convém retomar eventos que contribuíram para seu desenvolvimento no país, a fim de se contextualizar esse ensino.



[1]museus de arte infantil na Noruega, Suécia e Espanha. No Brasil, há uma coleção de desenhos infantis coletados por Mário de Andrade que está no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (usp).

[2] Estiveram ligadas a esse movimento 32 escolinhas de arte (barbosa, 2003a).

[3] Martins não defende mais a livre expressão como método de ensino artístico.

[4] O que ainda persiste em muitas escolas do país.

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