13 de junho de 2022

2.2 Ensino de arte no Brasil: apontamentos históricos

 2.2  Ensino de arte no Brasil: apontamentos históricos

 

Vários acontecimentos influenciaram as práticas educativas em arte. Por exemplo: Semana de Arte Moderna, em 1922; bienais internacionais de arte, a partir de 1950; movimentos de cultura popular dos anos de 1960; contracultura na década de 1970; surgimento dos cursos de pós-graduação em arte nos anos de 1980 e as experiências em arte-educação em museus e centros culturais nos anos de 1980 (ferraz; fusari, 1993).

Contudo, destaco aqui as escolinhas de arte como influência no método da livre expressão no contexto escolar. Elas começam com a educação experimental do poeta, chargista, desenhista, pintor, jornalista e educador Augusto Rodrigues (1913–93), na segunda metade do século xx. Nascido no Recife (pe), Rodrigues fundou, em 1948, a primeira Escolinha de Arte do Brasil (eab) para crianças, difundiu a idéia de liberdade de expressão e valorização da espontaneidade infantil, também, para o currículo do ensino normal. A princípio, a eab funcionou em um corredor da Biblioteca Castro Alves, no Rio de Janeiro. Tinha como característica ser uma experiência aberta, sem regras e horários pré-definidos. Nela, as práticas pedagógicas não diretivas foram incentivadas: as crianças eram livres para experimentar todo material que estivesse disponível, podiam desenhar em grandes papéis, cantar; colher flores no jardim e brincar (itaú cultural, 2006).

Em 1961, para influenciar o sistema educacional oficial e disseminar idéias defendidas pelos professores integrantes da eab, criou-se o Curso Intensivo de Arte-educação: especialização para docentes do ensino de arte ministrada por artistas e críticos como Cecília Conde, Fayga Ostrower e Ferreira Gullar (frange, 2001). Até então, não havia curso universitário que formasse professores de arte para atuarem na educação básica. O ensino escolar da arte obedecia à orientação geral da educação escolar do país, então preocupada com a preparação para o trabalho e a capacitação profissional de cidadãos, como se fazia desde 1882. As atividades artísticas escolares se restringiam ao ensino de geometria, prendas domésticas ou, nas escolas particulares, desenho, música, canto orfeônico e trabalhos manuais (ferraz; fusari, 1993).

Em 1971, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação/ldb (n. 5.692/71) foi reformulada e modificou a estrutura do ensino. O ensino de arte foi incluído no currículo escolar como atividade educativa, e não como disciplina, sob a denominação Educação Artística, a ser desenvolvida por um professor polivalente (com formação geral nas linguagens musical, plástica e teatral).

A indicação 36/73 afirma que o curso de Licenciatura em Educação Artística proporcionará sempre a habilitação geral em Educação Artística — e habilitação específica relacionada com as grandes divisões da arte: não mais de uma de cada vez, ante a natureza e amplitude dos estudos a realizar. (foerste, 1996, p. 40).

Em 1973, dada a falta de professores habilitados para aulas de Educação Artística, foram criados cursos de licenciatura curta (dois anos).[1] O despreparo teórico-metodológico dos educadores formados nessa licenciatura promoveu um aligeiramento do saber artístico e um ensino de arte inócuo, “[...] uma educação estética descartável, um fazer artístico pouco sólido e um apreciador de arte despreparado” (barbosa, 1984, p. 88). A prática artística nas escolas foi dominada por desenhos alusivos a datas comemorativas, cívicas, religiosas e a festas escolares. A licenciatura curta em Educação Artística foi uma interpretação errônea do princípio da interdisciplinaridade, porque superficial; o professor de arte tinha de dominar conteúdos diversos e três diferentes linguagens artísticas: artes plásticas, música e teatro. O uso de imagens nas salas de aula de então era quase inexistente. Apreciação estética de obras de arte não era preocupação. Como esclarece Barbosa (1996, p 12):

Apreciação artística e história da arte não têm lugar na escola. As únicas imagens na sala de aula são imagens ruins dos livros didáticos, as imagens das folhas de colorir e, no melhor dos casos, as imagens produzidas pelas próprias crianças. Mesmo os livros didáticos são raramente oferecidos às crianças porque elas não têm dinheiro para comprar livros.

Por volta de 1980, a insatisfação gerada pela situação precária do ensino de arte no Brasil mobilizou educadores brasileiros (espelhados em movimentos internacionais da categoria) em prol de uma reorganização desse ensino nas escolas.[2] Atentos ao empobrecimento do universo imagético dos alunos — reduzido a influências da indústria cultural —, os arte-educadores brasileiros, organizados em associações,[3] reconheceram a necessidade de haver novas concepções e práticas para o ensino de arte. É nesse contexto que Barbosa elabora a Proposta Triangular para o ensino de arte como abordagem que inclui a prática pedagógica das artes nas escolas não mais centrada no fazer artístico; agora, ela se volta à construção de conhecimentos sobre arte e à apreciação artística, com ênfase no estudo do contexto histórico de produção da obra.

Enquanto se aprofundava a luta pró-democracia no Brasil — que conduziu à reconquista das eleições diretas para governador, em 1982, e para Presidência da República, em 1984 —, ampliava-se o conhecimento e as mobilizações relativas à situação educacional do país. Nessa conjuntura, promulga-se a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional/ldben (n. 9.394/96);[4] a promulgação traduzia princípios propostos pelo Banco Mundial e sugeria uma sensação falsa de inovação. Professores e artistas organizados em federação (Federação de Arte Educadores do Brasil/faeb) foram decisivos quanto a reivindicar e conseguir a obrigatoriedade do ensino da arte na educação básica.[5]

A fim de normatizar os diferentes componentes curriculares, o então Ministério da Educação e Cultura (mec) lança, em 1997, os Parâmetros Curriculares Nacionais (pcn).[6] Definidos na sua apresentação como referenciais para a renovação e reelaboração da proposta curricular brasileira (brasil, 1997),

Os pcn devem ser entendidos pelos professores como documentos norteadores de sua prática pedagógica, não como proposições de caráter impositivo, a serem seguidas categoricamente. Enquanto documentos norteadores precisam ser analisados, interpretados e criticados; precisam ser adaptados às necessidades decorrentes das diferenças étnicas, culturais, de gênero, etárias, religiosas etc., e das desigualdades socioeconômicas presentes nas multiplicidades das realidades brasileiras. (almeida; barbosa, 2004, s. p.).[7]

As diretrizes para o ensino de arte na educação básica são apresentadas em três documentos: pcn/Arte para o ensino fundamental (brasil, 1997), Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (brasil, 1998) e pcn/Ensino médio (brasil, 1999).

A proposta de um currículo nacional para a educação básica — os pcn — recebeu pesadas críticas de educadores, por diferentes motivos:

[...] os educadores sabem que nenhuma prática pedagógica pode ser transformada por força da lei ou de documentos escritos; transformações desta ordem exigem mudanças nas condições concretas de trabalho, incluindo-se entre elas uma formação contínua dos professores/as, melhores salários, modificações na gestão escolar e infra-estrutura das escolas, entre outras. (almeida; barbosa, 2004, s. p.).

A pesquisadora brasileira Maura Penna deixa clara sua crítica à política educacional brasileira e aos parâmetros: “a política educacional brasileira está atrelada aos interesses dos organismos internacionais que concebem a educação como bem de consumo e instrumento de adestramento da mão-de-obra para o mercado de trabalho” (penna, 1997, p. 19). Ainda conforme essa autora, os pcn foram organizados sem que houvesse ampla participação dos professores; foram construídos com base no modelo espanhol de reforma curricular, orientado por César Coll.[8] Contratado como consultor do mec para a elaboração dos pcn brasileiros, Coll organizou uma equipe de pareceristas especialistas em suas disciplinas, porém sem representação de entidades de classe ou movimentos docentes, pois não tencionava criar um debate sobre o currículo nacional. A apropriação do modelo espanhol como referência tem dois grandes equívocos: implantação de um modelo formulado no contexto espanhol; contratação de uma equipe sem respaldo de entidades de classe e que desconheciam a realidade educacional das escolas de ensino fundamental e médio.

Os pcn deixam entrever forte tendência à homogeneização da educação, e isso não garante a qualidade do ensino ante a variedade cultural do país e ao pouco que se tem feito para valorizar a expressão de grupos culturais minoritário. Ao não incluir professores, alunos e diferentes segmentos sociais na participação da construção de uma proposta curricular, de modo a representar seus anseios e suas características culturais, os pcn configuram-se como propostas fechadas e fadadas a não ser postas em prática. Conforme Almeida e Barbosa (2004), é no processo que se constrói um currículo, em função de necessidades e problemas próprios de cada escola, pois é forjado em valores e conhecimentos, habilidades e afetos de quem, com a escola, relaciona-se direta ou indiretamente.

Com grande ênfase nas expressões artísticas eruditas e ocidentais, os pcn/Arte não sensibilizam o professor quanto à adoção de uma postura multiculturalista; não discute questões como função da arte em diferentes culturas ou o papel do artista nestas. Daí se pode supor uma visão elitista da arte. Isso é curioso, visto que os pcn/Arte têm clara inspiração na Proposta Triangular de Barbosa, que, no entanto, não é mencionada. Diz ela:

Quando, em 1997, o governo federal, por pressões externas, estabeleceu os Parâmetros Curriculares Nacionais, a Proposta Triangular foi a agenda escondida da área de Arte. Nesses Parâmetros foi desconsiderado todo o trabalho de revolução curricular que Paulo Freire desenvolveu quando secretário municipal de Educação (89–90) com vasta equipe de consultores e avaliação permanente. Os pcns brasileiros dirigidos por um educador espanhol des-historicizam nossa experiência educacional para se apresentarem como novidade e receita para a salvação da Educação Nacional. A nomenclatura dos componentes da Aprendizagem Triangular designados como: Fazer Arte (ou Produção), Leitura da Obra de Arte e Contextualização, foi trocada para Produção, Apreciação e Reflexão (da 1ª à 4ª séries) ou Produção, Apreciação e Contextualização (5ª à 8ª séries). Infelizmente, os pcns não estão surtindo efeito e a prova é que o próprio Ministério de Educação editou uma série designada Parâmetros em Ação, que é uma espécie de cartilha para uso dos pcns, determinando a imagem a ser “apreciada” e até o número de minutos para observação da imagem, além do diálogo a ser seguido. (barbosa, 2003a, p. 51).



[1] O movimento das escolinhas de arte perdeu importância e força após a criação de cursos universitários de Educação Artística e de mudanças na política interna (barbosa, 1996).

[2] A politização dos arte-educadores começou em 1980, na Semana de Arte promovida pela Escola de Comunicação e Artes/eca da usp, que reuniu 2,7 mil arte-educadores do país (barbosa, 1996, p. 13). Os cursos de atualização ou treinamento financiados para professores pelo governo começaram após a ditadura militar. O programa pioneiro foi o festival de Campos de Jordão (sp), em 1983 — primeiro a conectar análise da obra de arte/da imagem com história da arte e trabalho prático (barbosa, 1996, p. 16).

[3] A primeira associação foi a Sociedade Brasileira de Educação através da Arte (sobreart), fundada no início dos anos de 1970; a faeb se inicia em 1987, quando existiam 14 associações estaduais de arte-educadores.

[4] A proposta de elaboração tem origem na Conferência Mundial de Educação para Todos, convocada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (unesco), pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (unicef), pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (pnud) e pelo Banco Mundial. Foi realizada em 1990, em Jomtien, na Tailândia, onde nove países chegaram a algumas posições sobre quais são as necessidades básicas da aprendizagem para todos, para tornar universal a educação fundamental e ampliar as oportunidades de estudo para crianças, jovens e adultos.

[5] Em 1988, quando a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação começou a ser discutida na Câmara e no Senado, três projetos eliminavam a arte do currículo das escolas de ensino fundamental e médio (barbosa, 1996, p. 6).

[6] Embora os pcn tenham produzido uma reflexão sobre questões sociais que devem ser abordada em todos os componentes curriculares, não se pode esquecer que são consoantes com o projeto neoliberal de globalização e a política de investimento do Banco Mundial, que financia o setor educacional como medida de alívio e redução de pobreza no Terceiro Mundo e o considera um dos mais importantes.

[7] O texto original se encontra em inglês; uso aqui versão em português inédita cedida por uma das autoras.

[8] Professor e pesquisador espanhol da Universidad de Barcelona na área de psicologia e educação.

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