2.3 A Proposta Triangular para o ensino de arte
Originalmente denominada
Metodologia Triangular
para o ensino
de arte, a Proposta
Triangular foi sistematizada por
Barbosa, entre 1987 e 1993, e testada no Museu
de Arte Contemporânea
(mac) da usp, por uma equipe de doze
arte-educadores. A equipe explorava a leitura de obras
de arte do acervo
do museu com
crianças, adolescentes
e adultos sem
conhecimentos de arte.
Essa experimentação possibilitou sistematizar a metodologia, apresentada como
tal em
1991, na obra
A imagem
no ensino da arte
(barbosa, 1996).
Segundo Barbosa (1998), a origem
dessa proposta deriva
de uma dupla triangulação: de um lado, três vertentes
do ensino e da aprendizagem: fazer artístico, leitura da imagem
(obra de arte)
e contextualização (história da arte); de outro, a tríplice influência que a originou: os movimentos
das Escuelas al Aire Libre do
México, os Critical Studies (estudos críticos)
da Inglaterra e a proposta da Disciplined-based Art Education (dbae), dos eua. Segundo
diz Barbosa (1998), para
elaborar a Proposta
Triangular, ela
recorreu à idéia de antropofagia
cultural, após analisar
as diferentes propostas
internacionais.
Experiência de ensino de arte surgida em 1913, as Escuelas pretendiam recuperar a arte genuinamente
mexicana, constituindo uma gramática visual própria
de seu povo
pelo estímulo
à apreciação da arte local
e à expressão individual.
A proposta pedagógica
associava a liberdade de expressão com algum tipo de conhecimento sistematizado, “[...] sugestões de exercícios
a serem feitos a partir
da sistematização de formas e linhas dominantes
na arte e no artesanato
mexicano” (barbosa,
2003b, p. 102). Usava-se o livro didático de Adolf Best Maugard, que
pretendia despertar na juventude
o senso de apreciação da arte
mexicana e, assim, recuperar
o orgulho nacional.
Além da educação
formal e estética,
os objetivos incluíam a conscientização social e política
dos estudantes.
Até a revolução
de 1910, a cultura
mexicana, a arte e o artesanato
eram desprezados por todas as classes sociais
e apenas o que
era produzido na Europa despertava a admiração dos mexicanos. Por
outro lado,
o livro de Best Maugard e as Escuelas al
Aire Libre pretendiam educar o povo,
especialmente o espoliado
indígena. (barbosa, 2003b, p. 104).
As
Escuelas conseguiram se multiplicar, e, no auge da realização de seu projeto,
70% dos alunos que as freqüentavam eram de origem indígena. No entanto, em 1932, elas passaram a ser controladas pelo
Instituto de Belas Artes — isto é, passaram a se submeter ao currículo vigente
e perderam o caráter experimental que lhes deu sucesso em anos anteriores.
Outra vertente
que inspirou Barbosa foram os Critical
Studies, que defenderam a integração do museu
com a escola
e a apreciação de obras de arte:
Estudos Críticos é a esfera do ensino da arte que transforma os
trabalhos de arte em percepção precisa e não casual, analisando sua presença
estética, seus processos formativos, suas causas espirituais, sociais,
econômicas e políticas e seus efeitos culturais. [...] Se as obras de arte são
apenas submetidas a uma análise ingênua, elas podem ser bem conhecidas como
combinações de forma, cor, texturas e massa, mas pouco entendidas em relação
aos motivos religiosos, históricos, sociais, políticos, econômicos e outros que
as originaram. (thistlewood,
1997, p. 143).
Os
Critical Studies reconhecem o potencial
dos museus de arte
como condensadores
culturais e defendem a idéia de que a visita ao
acervo de um
museu deva
ser acompanhada por
um profissional
capaz de instruir
o visitante. Segundo
Thistlewood, esses estudos
Devem promover a completa
compreensão da origem
simbólica, tratando as raízes dos conceitos
visuais e formais,
comuns às suas
origens nos
movimentos e obras
de arte. Uma compreensão
crítica de como
os conceitos visuais
e formais aparecem na arte
[...] significa estar questionando e trazendo arte e museus de arte da periferia para o foco da relevância social. (1997, p. 155)
A
terceira vertente
teórica que
inspirou Barbosa fundamentou o programa
de ensino de arte
denominado dbae
(arte-educação entendida como disciplina),
elaborado pelos pesquisadores
Elliot Eisner, Brent Wilson, Ralph Smith e Marjorie Wilson, dentre outros,
e patrocinada pelo Getty Center for Education in the
Arts, no fim da década
de 1970. Esse
programa resultou de uma pesquisa encomendada pelo
Getty Center, que apontou uma grande queda na qualidade do ensino
de arte nas escolas
dos eua,
“[...] seguida por
uma perda de status perante as outras áreas
de conhecimento contempladas no currículo escolar”
(rizzi, 1999,
p. 40). O dbae
pressupõe que, para
o ensino de arte
ser eficiente
e de qualidade, é necessária
a interação de quatro
campos de conhecimento
distintos: produção artística — uso de meios materiais pela criança para transmitir
idéias, imagens
e sentimentos; história da arte — compreensão das relações
entre arte e conceitos estéticos
das diferentes épocas;
estética — reflexão
sobre a qualidade
das obras de arte
e do mundo visual,
bem como a filosofia da arte; e crítica — julgamentos sobre
a expressão artística
através do ato
de ver e descrever o mundo visual.
Essas
quatro disciplinas
alicerçam a idéia de que um bom programa de
arte na escola
deve partir da convicção
de que a arte
não é apenas ornamento, e sim uma parte
do patrimônio cultural, por isso merece
a mesma atenção
que outras disciplinas
no currículo escolar.
Na sua
fundamentação, o dbae questiona os métodos
de ensinar arte centrados
na manipulação de materiais
e no ensino e na aprendizagem de técnicas artísticas. Seus
idealizadores afirmam que o aprendizado artístico
requer mais que
conhecimentos e habilidades
para se usarem materiais
de arte e que
o professor deve assumir papel ativo e exigente: em vez de oferecer aos alunos os materiais
artísticos, deve apoiar
e orientar a produção artística dos materiais.
Partindo das discussões
educacionais sobre experiência, sobretudo as fundamentadas nas afirmações do
pensador John Dewey (primeira metade do século xx),
os defensores do dbae acreditam que o professor de arte
deve incentivar a realização de experiências úteis à reflexão das crianças
acerca da arte — objetivo central.
Para a experiência ter valor educacional, o indivíduo
deve experimentar desenvolvendo a habilidade de lidar inteligentemente com
problemas que
ele inevitavelmente encontrará no mundo. Para os
arte-educadores, são as artes, e as artes
visuais em
particular, que
fornecerão isto. Programas
de ensino de arte
que são
significativos para
a criança capacitam-na a pensar
mais inteligentemente
sobre a arte
e suas diversas manifestações
no mundo. [...] Existem quatro coisas principais que
as pessoas fazem com
a arte. Elas
vêem arte. Elas
entendem o lugar da arte
na cultura, através
dos tempos. Elas
fazem julgamentos sobre
suas qualidades.
Elas fazem arte. (eisner, 1997, p. 82).
Arte
como disciplina a ser incluída no currículo para enriquecer a cultura escolar.
Eis o pensamento de Eisner; para ele, “a arte não deve ser auxiliar nos estudos
sociais ou das línguas. [...] [é preciso] um isolamento cada vez maior das
artes, a fim de proteger suas especificidades de disciplinas consideradas mais
importantes” (eisner,
1997, p. 84). O dbae almeja contribuir para o
desenvolvimento e as experiências humanas; eis por que o aluno é convidando a
criar, improvisar, compor, executar, interpretar, discutir, escrever e pensar,
relatando e avaliando trabalhos de arte.
Embora
sejam estas as três experiências de ensino de arte a influência e inspiração
para Barbosa elaborar sua Proposta Triangular, esta tem sido interpretada como
adaptação, simples tradução da proposta do dbae nos eua. Em várias publicações,
autores distintos
reconhecem na Proposta Triangular uma fundamentação/adaptação do dbae:
Vamos
encontrar [...] no Brasil a evolução das preocupações encontradas em todo esse
processo de questionamento sobre o ensino de arte, a partir das propostas do
Getty Center sob o nome de Metodologia Triangular do Ensino de Arte. A proposta
é da Profª Drª Anna Mae Barbosa que optou por fundir a Crítica e a Estética no
que ela denominou Leitura da Obra de Arte. (são paulo, 1992, p. 10).
Preocupada
com interpretações equivocadas de sua proposta, Barbosa procura dissipá-las em Tópicos utópicos (1998). Argumenta ela:
A “Proposta Triangular” não foi adaptada do dbae, mas sistematizada a partir das condições
estéticas e culturais da pós-modernidade brasileira. A “Proposta Triangular” e o dbae são interpretações diferentes, no máximo paralelas. [...] a Proposta
Triangular se opõe ao dbae, porque este disciplinariza os
componentes da aprendizagem da arte, separando-os em fazer artístico, crítica
de arte, estética e História da Arte, revelando, inclusive, um viés modernista
na defesa implícita de um currículo desenhado por disciplinas. (barbosa, 1998, p. 37).
Se a Proposta
Triangular tem influências
das propostas relatadas por Barbosa, também
o tem do pensamento pedagógico
do educador brasileiro
Paulo Freire, conforme relatou essa
autora (barbosa, 2006a). Barbosa (1998) afirma que
construiu suas concepções
teórico-práticas de educação durante a carreira
de arte-educadora; noutras palavras, sua visão de homem e de mundo
e o discurso pedagógico
são influenciados pela
conjuntura sociopolítico-cultural-econômica. As palavras da educadora Gerda Margit Schutz Foerste
reiteram essa afirmação:
Sua produção [...] não pode ser compreendida
como resultado de um processo lógico e linear, [...] são resultantes de uma
intrincada relação de inúmeros fatores, desde a ação dos mais diversos
determinantes sociais até as influências psicológicas próprias a sua
singularidade. (foerste, 1996, p. 131).
Barbosa opta pela
educação
após conhecer
o pensamento pedagógico
de Paulo Freire. Mais que isso, é o trabalho pós-exílio de Freire na Secretaria
de Educação de São
Paulo (1989–91) que
cria condições
para ampliar as experiências de Barbosa concretizadas na Proposta Triangular. Ela acredita que,
na elaboração da proposta,
a influência maior
de Freire esteja na parte relativa à contextualização da obra
de arte. Diz ela,
em entrevista
a Foerste: “a idéia da contextualização,
de leitura, é influenciada por Paulo Freire. É a idéia
de que nunca
se deve descontextualizar o ensino. O ensino deve estar sempre referido ao seu
contexto” (barbosa apud foerste, 1996, p. 158). Para Freire (1988), é importante
respeitar a cultura
e a história de vida
dos educandos; assim
como não
desvincular jamais
os conteúdos do contexto
de produção.
Segundo Barbosa (1998), as idéias
de Freire a influenciam à medida que ela retoma
a pedagogia questionadora ou do diálogo em seu trabalho. Fundamento
da pedagogia de Freire, o diálogo se justifica porque
media o encontro entre
homens e o encontro
destes com o mundo;
a cultura do não-diálogo é a educação do receber, decorar e repetir, isto é, do favorecimento
de uma “cultura do silêncio”.
O diálogo favorece o intercambio de idéias, por isso deve ser estabelecido entre obra de arte e expectador, no dizer de Barbosa (1998). Nessa
mediação, a leitura de mundo de cada educando e as trocas
dialógicas embasam a construção de outros conhecimentos
sobre a arte.
Da teoria dialógica,
também valem para
o diálogo a colaboração,
a união, a organização
e a síntese cultural (freire, 1988). A ação dialógica só se concretiza em
atitudes-chave do/a educador/a: saber escutar o que educandos/as
têm a dizer — o que
sentem, desejam, esperam e pensam; respeitar as diferenças — culturais, sociais,
econômicas, religiosas; partir de sua leitura de mundo e, após tudo isso, escolher, com educandos/as, conteúdos
que supram as necessidades
de uma educação crítica
e libertadora.
Outra influência de Barbosa (2006a) é a arquiteta ítalo-brasileira
Lina Bo Bardi, que atuou na construção de uma política
cultural para os museus.
Bardi
concebia os museus como
espaços educativos,
de memória coletiva
e comunicação humana
direta; espaços
provocantes, vivos, cotidianos,
polêmicos. Para Barbosa, os programas
educativos dos museus
facilitam a aproximação das obras
de arte. Diz ela:
Museus são Laboratórios
de Conhecimento de Arte,
tão importantes
para a aprendizagem da Arte
como os Laboratórios
de Química o são
para a aprendizagem da Química.
Compete aos educadores que levam seus alunos aos museus
estender nas oficinas,
nos ateliês
e salas de aula
o que foi aprendido e apreendido no Museu.
(barbosa, 2004b, s. p.).
Além do trabalho educativo em museus,
festivais e congressos auxiliaram a construção de outra concepção do ensino de
arte no Brasil e, logo, a formulação e consolidação da Proposta Triangular. A
realização do Festival de Campos de Jordão, em 1983, foi a primeira experiência brasileira a vincular análise da
obra de arte e da imagem com a história da arte e com o trabalho prático.
Organizado por Claudia Toni, Gláucia Amaral e Ana Mae Barbosa, foi patrocinado
pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e dirigido aos professores
da educação básica. Eis o que diz Barbosa sobre esse evento:
Tivemos 400 professores de arte convivendo juntos
por 15 dias
numa cidade de férias
de inverno, Campos
do Jordão. [...] Os cursos de apreciação
artística foram baseados
na decodificação do meio ambiente estético
da cidade (da música
de compositores populares
locais, num projeto
de lazer na cidade,
pintores e escultores
locais, grupos
de dança, etc.). Os cursos
de leituras de imagens
móveis estavam ligados com a decifração da imagem
televisiva e a leitura de imagens fixas, principalmente
com as pinturas
e esculturas da coleção
do palácio de inverno
do governador, a segunda
melhor coleção
de arte moderna
brasileira, fechada para
o público até
aquele momento.
A leitura da imagem
impressa aconteceu como
curso de arte-xerox. (barbosa, 1989, s. p.).
Com a divulgação
da Proposta Triangular
— em artigo
(1989), livro (1996), encontros,
congressos e documentos
de secretarias estaduais e municipais de
Educação —, as idéias
de Barbosa são interpretadas de várias formas; o emprego
do termo metodologia levou a uma interpretação dogmática,
segundo Barbosa (1998). Preocupada com o fato de
os professores tomarem a então “metodologia”
como receita
para prática escolar e no afã
de corrigir esse
equívoco, Barbosa explica o porquê de mudar o termo “metodologia”
para “proposta”:
Foi no esforço
dialogal entre
o discurso pós-moderno global e o processo consciente de diferenciação
cultural também pós-moderno que, no Ensino
da Arte, surgiu a abordagem
que ficou conhecida
no Brasil como Metodologia
Triangular, uma designação infeliz,
mas uma ação
reconstrutora. [...] Culpo-me por ter aceitado o apelido
e usado a expressão Metodologia Triangular em meu livro [...], depois
de anos estou convencida
de que metodologia
é a construção de cada
professor em sua sala de aula e gostaria de ver a expressão Proposta Triangular substituir a
prepotente designação Metodologia Triangular. (barbosa, 1998, p. 33).
Como
diz Barbosa (1998),
método se vincula com objetivos; e entender a Proposta Triangular como
estratégia é desprezar a capacidade dos professores de criar, elaborar e pôr em
prática suas idéias. Com efeito, métodos não se reduzem a procedimentos e
técnicas: “[...] decorrem de uma
concepção de sociedade, da natureza da atividade prática humana no mundo, do
processo de conhecimento e, particularmente, da compreensão da prática
educativa numa determinada sociedade” (libâneo, 1994, p. 151). Regina
Machado reitera a idéia de que a Proposta Triangular não é metodologia, pois a
proposta define o objeto da área, o ponto de partida para a enunciação de objetivos,
conteúdos e procedimentos metodológicos a serem propostos pelo professor.
Ela [a Proposta
Triangular] estrutura
o conhecimento de nossa
área em
bases sólidas, estabelecendo os eixos fundantes da aprendizagem da Arte.
Mais do que
isso, suscita questões
metodológicas instigantes, que levam os professores
a enfrentarem a necessidade de rever seu trabalho, buscando novos
caminhos para
o processo de ensino
e aprendizagem artística. (machado, 1996, s. p.).
Do francês
“anthropophagie” (século xvi), derivada do grego “anthropophagía”, a palavra
designa o ato de se alimentar
de carne humana
(antropofagia, 1999). Nas artes,
refere-se à manifestação artística brasileira
inaugurada pelo Manifesto antropofágico (1928), escrito por Oswald de Andrade. Segundo
Ferreira Gullar (1998), o movimento se
origina num quadro de Tarsila do Amaral com que ela presenteou Oswald. Entusiasmado com a originalidade
do quadro, ele
telefonou para Raul Bopp, que,
ao ver a pintura,
teria sugerido a criação de um movimento em torno desta.
Num dicionário de tupi-guarani,
encontraram o nome que
dariam à obra: Abaporu — isto é, antropófago. Assim, a
antropofagia significava deglutir
— daí o tom metafórico
da palavra — a cultura
do outro (das Américas, da Europa, de ameríndios e afro-descendentes, dentre
outras) para inventar o olhar brasileiro. Como esclarece Nicolau Sevcenko (1998), Oswald, em
suas idas
à Europa, conviveu com criadores da arte moderna e, com base em sua circunstância
pessoal, percebeu algo
decisivo: não
só a economia
brasileira, mas
também a cultura
seguia uma pauta européia; e o Manifesto antropofágico propõe inverter
essa lógica colonial: usar
a modernidade para sair
da dependência cultural.
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