1.2 Educação, escola, cultura e currículo
Não é difícil
perceber a relação
entre educação
e cultura. Em
sentido amplo,
educação significa a constituição e socialização de alguém;
experiência básica
do ser humano
de aprender e entender a cultura. Implica sempre
uma relação de alguém
com alguém;
pressupõe comunicação, transmissão e aquisição de conhecimentos, crenças,
hábitos, valores,
conteúdos de uma cultura.
Como diz Jean-Claude Forquin (1993, p. 14): “[...] educação
e cultura aparecem como
duas faces, rigorosamente
recíprocas e complementares, de uma mesma realidade: uma não pode ser pensada sem a outra e toda reflexão sobre uma desemboca imediatamente
na consideração da outra”.
Noutros termos, a educação
é vital. Não
é mera adaptação
do indivíduo ao meio
natural e cultural; porque
é uma atividade criadora. Carlos
Rodrigues Brandão toma a educação como fração da experiência
endoculturativa própria das relações entre pessoas e nas intenções
de ensinar e aprender. A educação ajuda
“[...] a crescer, orientar
a maturação, transformar em,
tornar capaz,
trabalhar sobre,
domar, polir, criar como um sujeito social, a obra, de que o homem natural é a matéria-prima”
(brandão, 1989, p. 24).
Sobre os fins
da educação, há idéias
diferentes: adaptação
à vida social;
aperfeiçoamento das faculdades humanas;
possibilidade de o indivíduo ascender socialmente;
processo de conscientização e questionamento
da realidade. Isso
porque, à educação,
convergem interesses econômicos e políticos.
Brandão (1989, p. 60) pode ser esclarecedor aqui:
Não é raro
que aqui,
como em
toda parte,
a fala que
idealiza a educação esconda, no silêncio do que
não diz, os interesses
que pessoas
e grupos têm para
os seus usos.
Pois, do ponto de vista de quem a
controla, muitas vezes definir
educação e legislar
sobre ela
implica justamente ocultar
a parcialidade destes interesses, ou seja, a realidade de que eles servem
a grupos, a classes
sociais determinadas, e não tanto “a todos”, “à nação”,
“aos brasileiros”.
Pensar na educação é
pensar na escola como espaço exclusivamente educativo, destinado a integrar o
indivíduo em outros tipos de experiências e códigos diferentes daqueles
apreendidos na família; à escola,
cabe transmitir a cultura científica, distinta do conhecimento do homem comum.
Todavia, ela se encontra em situação contraditória: se propõe a difundir
conhecimentos, valores e hábitos definidos pelo sistema escolar, mas está
cercada pela cultura, difundida pelos meios de comunicação de massa. Hoje o
universo cultural e o acesso a ele se ampliaram a ponto de ser improvável uma
visão unitária de mundo. As culturas se infiltram em todo e qualquer espaço:
sala de aula, tela do televisor, websites,
revistas e jornais; outras gramáticas culturais chegam à escola pela televisão
(propaganda, jogos e filmes) e via internet. Noutros termos, a escola perde sua
hegemonia como única referência cultural, por isso necessita aprender a lidar
com a cultura pós-moderna.
Tida como
patrimônio da escola,
a cultura foi por
séculos pensada como
única e universal:
tudo que
a humanidade produziu de melhor — material,
científica, filosófica, literária e artisticamente. “Culto”
era quem
tinha conhecimentos
que permitiam ser
superior aos demais,
e para sê-lo haveria de se freqüentar
uma escola. Todavia,
o presente exige mais.
No dizer da professora e pesquisadora brasileira Marisa Vorraber Costa
(2005) a propósito das relações entre
escola e cultura
contemporânea, neste início de século
xxi educar não quer dizer apenas dar conta de novas
competências técnicas,
científicas e pedagógicas. Na cultura contemporânea — prossegue essa autora —, educar requer sensibilidade.
Nesta delicada tarefa, uma conduta
recomendável, a meu ver,
é não diabolizar nem
endeusar as culturas
e o seu tempo.
Todos os tempos
têm os seus encantos
e as suas mazelas,
suas faces
edificantes e outras tenebrosas e obscurantistas. Um
não é melhor
do que o outro:
são apenas
diferentes. A valorização daquilo que as culturas
e seus tempos
produzem é uma questão de verificação
histórica, mas
nunca uma a priori. (costa, 2005, s. p.).
O presente
exige, também, uma reflexão
sobre o currículo
escolar. Derivado da palavra latina curriculum (curso,
rumo, caminho
da vida, dentre
outros sentidos),
em educação
currículo pode ser
definido como
conjunto dos conteúdos
apresentados para estudo.
As discussões sobre
currículo no âmbito
da educação começaram em 1918, nos Estados Unidos (eua), com
Franklin Bobbitt, que entende o conhecimento como
conjunto de fatos
objetivos, externos
ao indivíduo; dito
de outro modo,
o conhecimento não
pode ser questionado
ou negociado. A escola
estadunidense de então tinha papel importante na homogeneização
cultural, por isso
buscava preservar e restaurar
valores ameaçados de se perderem em razão da ordem social
provocada pela chegada
de imigrantes de diferentes
origens. Como
a escola precisava formar
pessoas para diferentes níveis
de hierarquia, isso
exigia uma organização eficiente do currículo,
que se fundamentava nas idéias de padronização e eficiência. De certa
forma dando continuidade ao trabalho
de Bobbitt, em 1949 Ralph Tyler
publica um manual
bastante técnico
sobre como
selecionar e organizar
experiências de aprendizagens para tornar o currículo eficiente
(silva, 1999).
Como se pode depreender,
o currículo não
é terreno pacífico:
sofre determinações políticas,
econômicas, sociais e culturais. Nesse sentido, à luz
dos ec, a seleção
do conhecimento escolar
— seleção de disciplinas,
campos de um
currículo — não
é ato desinteressado
e neutro: resulta de lutas, conflitos
e negociações. Se sofre determinação
cultural e é historicamente situado, o currículo
não pode se desvincular
do todo social;
logo, pensar em seleção de conteúdos requer compreender
que os conhecimentos
implicam relações de poder.
As
questões de técnica são importantes e precisam ser feitas; mas, uma vez que a
escola não está divorciada das relações de exploração e dominação na sociedade
e das lutas para superá-la, devemos perguntar o que constitui um conhecimento
política e eticamente justificável, antes que nos lancemos a ensiná-lo. (apple, 1989, p. 46).
Os ec nos permitem conceber o currículo como campo de luta em torno da significação e da identidade.
Conforme Silva (1999, p. 135), conhecimento e currículo
são “[...] campos
culturais, campos sujeitos
à disputa e à interpretação,
nos quais
os diferentes grupos
tentam estabelecer sua
hegemonia”. Nessa ótica,
o currículo é construção
social porque
se vincula a um momento
histórico, a uma sociedade
e às relações que
esta estabelece com o conhecimento. O currículo
é artefato cultural porque
“o conhecimento não
é uma revelação ou
reflexo da natureza
ou da realidade,
mas o resultado
de um processo
de criação e interpretação
social” (silva, 1999, p. 135).
Se os conteúdos não são os mesmos —
afinal, são
historicamente construídos —, ensinar supõe selecionar e questionar conteúdos e práticas
pedagógicas segundo critérios
histórica e culturalmente definidos. Não são escolhas
neutras; é decisão política.
As escolhas dos professores
são baseadas em
suas experiências
como alunos
e profissionais da educação,
mas refletem o universo
em que
estão, social, cultural e
historicamente. Nesse sentido, deve-se considerar o currículo
como instrumento
significativo para desenvolver processos
de conservação social
em defesa
de idéias e comportamentos
culturalmente aceitos e estabilizados, assim
como para transformar e renovar conhecimentos construídos (silva, 1999).
Como artefato
cultural[2]
passível de investigação,
a Proposta Triangular
para o ensino
de arte constitui aqui
objeto de estudo,
a ser desconstruído e ter
exposto o processo
de sua naturalização.
Conforme Silva (1999), a naturalização provoca o esquecimento:
apaga o modo como
o artefato cultural foi construído, e isso
é ignorar sua
origem social.
Se o artefato é compreendido só na superfície
— isto é, se se aceita a representação que
dele fazem —, a análise culturalista procura investigar as forças sociais
nele expressas e compreender o conhecimento
“[...] como campo
sujeito à disputa
e interpretação, nos
quais diferentes
grupos tentam estabelecer
sua hegemonia”
(silva, 1999, p. 135). Nesse contexto,
convém descrever algumas concepções
de ensino de arte
expressas no século xx e a Proposta Triangular.
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