1 de junho de 2022

Educação, escola, cultura e currículo

 

1.2  Educação, escola, cultura e currículo

 

Não é difícil perceber a relação entre educação e cultura. Em sentido amplo, educação significa a constituição e socialização de alguém; experiência básica do ser humano de aprender e entender a cultura. Implica sempre uma relação de alguém com alguém; pressupõe comunicação, transmissão e aquisição de conhecimentos, crenças, hábitos, valores, conteúdos de uma cultura. Como diz Jean-Claude Forquin (1993, p. 14): “[...] educação e cultura aparecem como duas faces, rigorosamente recíprocas e complementares, de uma mesma realidade: uma não pode ser pensada sem a outra e toda reflexão sobre uma desemboca imediatamente na consideração da outra”. Noutros termos, a educação é vital. Não é mera adaptação do indivíduo ao meio natural e cultural; porque é uma atividade criadora. Carlos Rodrigues Brandão toma a educação como fração da experiência endoculturativa própria das relações entre pessoas e nas intenções de ensinar e aprender. A educação ajuda “[...] a crescer, orientar a maturação, transformar em, tornar capaz, trabalhar sobre, domar, polir, criar como um sujeito social, a obra, de que o homem natural é a matéria-prima” (brandão, 1989, p. 24).

Sobre os fins da educação, há idéias diferentes: adaptação à vida social; aperfeiçoamento das faculdades humanas; possibilidade de o indivíduo ascender socialmente; processo de conscientização e questionamento da realidade. Isso porque, à educação, convergem interesses econômicos e políticos. Brandão (1989, p. 60) pode ser esclarecedor aqui:

Não é raro que aqui, como em toda parte, a fala que idealiza a educação esconda, no silêncio do que não diz, os interesses que pessoas e grupos têm para os seus usos. Pois, do ponto de vista de quem a controla, muitas vezes definir educação e legislar sobre ela implica justamente ocultar a parcialidade destes interesses, ou seja, a realidade de que eles servem a grupos, a classes sociais determinadas, e não tanto “a todos”, “à nação”, “aos brasileiros”.

Pensar na educação é pensar na escola como espaço exclusivamente educativo, destinado a integrar o indivíduo em outros tipos de experiências e códigos diferentes daqueles apreendidos na família; à escola,[1] cabe transmitir a cultura científica, distinta do conhecimento do homem comum. Todavia, ela se encontra em situação contraditória: se propõe a difundir conhecimentos, valores e hábitos definidos pelo sistema escolar, mas está cercada pela cultura, difundida pelos meios de comunicação de massa. Hoje o universo cultural e o acesso a ele se ampliaram a ponto de ser improvável uma visão unitária de mundo. As culturas se infiltram em todo e qualquer espaço: sala de aula, tela do televisor, websites, revistas e jornais; outras gramáticas culturais chegam à escola pela televisão (propaganda, jogos e filmes) e via internet. Noutros termos, a escola perde sua hegemonia como única referência cultural, por isso necessita aprender a lidar com a cultura pós-moderna.

Tida como patrimônio da escola, a cultura foi por séculos pensada como única e universal: tudo que a humanidade produziu de melhormaterial, científica, filosófica, literária e artisticamente. “Cultoera quem tinha conhecimentos que permitiam ser superior aos demais, e para sê-lo haveria de se freqüentar uma escola. Todavia, o presente exige mais. No dizer da professora e pesquisadora brasileira Marisa Vorraber Costa (2005) a propósito das relações entre escola e cultura contemporânea, neste início de século xxi educar não quer dizer apenas dar conta de novas competências técnicas, científicas e pedagógicas. Na cultura contemporânea — prossegue essa autora —, educar requer sensibilidade.

Nesta delicada tarefa, uma conduta recomendável, a meu ver, é não diabolizar nem endeusar as culturas e o seu tempo. Todos os tempos têm os seus encantos e as suas mazelas, suas faces edificantes e outras tenebrosas e obscurantistas. Um não é melhor do que o outro: são apenas diferentes. A valorização daquilo que as culturas e seus tempos produzem é uma questão de verificação histórica, mas nunca uma a priori. (costa, 2005, s. p.).

O presente exige, também, uma reflexão sobre o currículo escolar. Derivado da palavra latina curriculum (curso, rumo, caminho da vida, dentre outros sentidos), em educação currículo pode ser definido como conjunto dos conteúdos apresentados para estudo. As discussões sobre currículo no âmbito da educação começaram em 1918, nos Estados Unidos (eua), com Franklin Bobbitt, que entende o conhecimento como conjunto de fatos objetivos, externos ao indivíduo; dito de outro modo, o conhecimento não pode ser questionado ou negociado. A escola estadunidense de então tinha papel importante na homogeneização cultural, por isso buscava preservar e restaurar valores ameaçados de se perderem em razão da ordem social provocada pela chegada de imigrantes de diferentes origens. Como a escola precisava formar pessoas para diferentes níveis de hierarquia, isso exigia uma organização eficiente do currículo, que se fundamentava nas idéias de padronização e eficiência. De certa forma dando continuidade ao trabalho de Bobbitt, em 1949 Ralph Tyler publica um manual bastante técnico sobre como selecionar e organizar experiências de aprendizagens para tornar o currículo eficiente (silva, 1999).

Como se pode depreender, o currículo não é terreno pacífico: sofre determinações políticas, econômicas, sociais e culturais. Nesse sentido, à luz dos ec, a seleção do conhecimento escolarseleção de disciplinas, campos de um currículonão é ato desinteressado e neutro: resulta de lutas, conflitos e negociações. Se sofre determinação cultural e é historicamente situado, o currículo não pode se desvincular do todo social; logo, pensar em seleção de conteúdos requer compreender que os conhecimentos implicam relações de poder.

As questões de técnica são importantes e precisam ser feitas; mas, uma vez que a escola não está divorciada das relações de exploração e dominação na sociedade e das lutas para superá-la, devemos perguntar o que constitui um conhecimento política e eticamente justificável, antes que nos lancemos a ensiná-lo. (apple, 1989, p. 46).

Os ec nos permitem conceber o currículo como campo de luta em torno da significação e da identidade. Conforme Silva (1999, p. 135), conhecimento e currículo são “[...] campos culturais, campos sujeitos à disputa e à interpretação, nos quais os diferentes grupos tentam estabelecer sua hegemonia”. Nessa ótica, o currículo é construção social porque se vincula a um momento histórico, a uma sociedade e às relações que esta estabelece com o conhecimento. O currículo é artefato cultural porque “o conhecimento não é uma revelação ou reflexo da natureza ou da realidade, mas o resultado de um processo de criação e interpretação social” (silva, 1999, p. 135).

Se os conteúdos não são os mesmosafinal, são historicamente construídos —, ensinar supõe selecionar e questionar conteúdos e práticas pedagógicas segundo critérios histórica e culturalmente definidos. Não são escolhas neutras; é decisão política. As escolhas dos professores são baseadas em suas experiências como alunos e profissionais da educação, mas refletem o universo em que estão, social, cultural e historicamente. Nesse sentido, deve-se considerar o currículo como instrumento significativo para desenvolver processos de conservação social em defesa de idéias e comportamentos culturalmente aceitos e estabilizados, assim como para transformar e renovar conhecimentos construídos (silva, 1999).

Como artefato cultural[2] passível de investigação, a Proposta Triangular para o ensino de arte constitui aqui objeto de estudo, a ser desconstruído e ter exposto o processo de sua naturalização. Conforme Silva (1999), a naturalização provoca o esquecimento: apaga o modo como o artefato cultural foi construído, e isso é ignorar sua origem social. Se o artefato é compreendido na superfícieisto é, se se aceita a representação que dele fazem —, a análise culturalista procura investigar as forças sociais nele expressas e compreender o conhecimento “[...] como campo sujeito à disputa e interpretação, nos quais diferentes grupos tentam estabelecer sua hegemonia” (silva, 1999, p. 135). Nesse contexto, convém descrever algumas concepções de ensino de arte expressas no século xx e a Proposta Triangular.



[1] Embora houvesse alguns estabelecimentos de ensino, a maioria religiosos, a escola se consolidou no século xvii; mas se tornou necessária para transmitir conhecimentos úteis à complexidade do trabalho nos séculos xviii e xix, com a industrialização (dussel, 2003).

[2] Na acepção de Hall (1997), podemos considerar artefato cultural tudo que é produzido socialmente.

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