30 de maio de 2022

Estudos culturais: percurso histórico

 

1.1  Estudos culturais: percurso histórico

 

O debate sobre cultura ganha fôlego na segunda metade dos anos de 1950, quando o crítico literário e professor britânico Raymond Frank Leavis (1895–1978) propôs usar o sistema educacional para distribuir mais o conhecimento da “alta cultura”. Contra essa concepção elitista de cultura, insurgiram dois estudiosos provenientes da classe trabalhadora inglesa — Richard Hoggart e Raymond Williams — que questionaram as idéias de Leavis e combateram a concepção de cultura comoespírito cultivado”, forma superior de arte, ciência e literatura.

A discussão se consolidaria nos anos de 1960, graças, sobretudo, ao trabalho de um pequeno grupo de intelectuais reunidos na Universidade de Birmingham, Inglaterra. Ali, eles criaram, em 1964, o Centre for Contemporary Cultural Studies/cccs (Centro de Estudos Culturais Contemporâneos) — origem dos estudos culturais (ec), que provocariam uma reviravolta nas investigações sobre a cultura. Nos ec, a cultura é entendida como modo de viver e entender o mundo; como criação e trabalho; como algo dinâmico e instável. Ao combaterem a concepção de cultura como condição, os estudiosos dos ec defendem a não-distinção entrealta” e “baixaculturas, pois a cultura deve ser concebida como traços de modos de vida, dinâmica de relacionamento do indivíduo com o real, com sua realidade, ou luta entre modos de vida diferentes. Tal noção se difere da concepção de cultura como patrimônio, monopólio de idéias prontas.

Em estudos de orientação marxista, os pesquisadores do cccs exploraram as funções políticas da cultura e se interessaram pelas manifestações da cultura de massa. Para discutir cultura popular, cultura de massa, indústria cultural e criação de uma cultura de resistência, os primeiros representantes dos ec recorreram a conceitos como hegemonia cultural (Gramsci) e indústria cultural (Escola de Frankfurt), que os influenciaram. Partem do princípio gramsciniano de que o capitalismo mantém o poder pela coerção política ou econômica e, sobretudo, pela coerção ideológica por meio de “aparelhos privados de hegemonia”.[1]

No fim da década de 1960, assumiu a direção do cccs o sociólogo jamaicano Stuart Hall,[2] divulgador dos ec como movimento acadêmico intelectual internacional que discute os conceitos de raça, etnia e os efeitos do colonialismo nas sociedades. Hall (1997) argumenta em favor da necessidade de se compreender a cultura como algo fundamental e constitutivo do mundo. A cultura — diz ele — tem assumido posição central na organização da sociedade; “[...] penetra em cada recanto da vida social contemporânea, fazendo proliferar ambientes secundários, mediando tudo” (hall, 1997, p. 22).

Nos anos seguintes, buscando entrecruzar diferentes tendências teóricas, os ec dialogam com teorias francesas e absorvem idéias de pensadores como Bourdieu, Certeau, Derrida e Foucault.

[...] passam do estudo das comunidades — articulados como classes ou subculturas — para o estudo dos grupos étnicos, de mulheres, raciais e tornam-se a voz do outro na academia, absorvendo assim um contingente expressivo de antropólogos, sem, entretanto, abrir mão da criação de cruzamentos intelectuais e institucionais que produzam o efeito político de expandir a sociedade civil. (hollanda, 1996).

As várias faces contemporâneas dos ec incluem discussões sobre pós-modernismo e pós-estruturalismo. Mas foram as teorias pós-colonialista e crítica — tratam de questões relativas às minorias e micropolíticas — que criaram condições para haver, no âmbito dos ec, “[...] o debate da identidade nacional, da representação, da etnicidade, da diferença e da subalternidade no centro da história da cultura mundial contemporânea” (prysthon, 2003, p. 138). Os ec nunca se vincularam a um campo disciplinar específico; antes, buscaram subsídios na antropologia, filosofia, história, sociologia e teoria literária. Os estudos atuais abordam as diferentes práticas culturais: preocupam-se em refletir sobre a mídia, sobre os modos como o público se apropria dela e sobre como imagens e discursos midiáticos funcionam no interior da cultura geral. Para os ec, a mídia ocupa posição dominante e ajuda a estabelecer e perpetuar a hegemonia de certos grupos e determinados projetos políticos.

No debate sobre escola e currículo, a discussão sobre a cultura entra num terreno fértil, porque complexo. À luz dos ec, a cultura e o conhecimento são entendidos como produto de relações sociais — hierárquicas e de poder; qualquer objeto cultural de análise pode ser tomado como artefato cultural e, assim, ser investigados pelos ec. Nesses termos, educação e escola passam a ser interpretadas como pontos de encontro de culturas, que muitas vezes provocam tensões, restrições e contrastes na construção do significado. A cultura passa a ser entendida como campo de luta: “[...] campo onde se define não apenas a forma que o mundo deve ter, mas também a forma que as pessoas e os grupos devem ter. A cultura é um jogo de poder” (silva, 1999, p. 134).

Ainda no âmbito escolar-curricular, os ec vão contribuir para haver ressignificação de termos como cultura, educação, identidade e discurso; e mais: ao proporem uma discussão sobre cultura, ampliam e estendem as noções de educação, pedagogia e currículo. Diversidade étnica e nacionalidade; discriminação; relações de poder entre culturas, nações, povos, etnias, raças, orientações sexuais e gêneros passaram a ser assuntos também da educação e do universo escolar. Para os ec, o currículo não pode mais ser encarado como algo neutro, distante das questões sociais e políticas, porque a educação não é neutra nem distante.



[1] Organismos relativamente autônomos em face do Estado em sentido estrito: associações, escola privada, Igreja, imprensa, partidos políticos, sindicatos, universidades e outros.

[2] Em 1979, Hall se transferiu para a Open University (Inglaterra), instituição de ensino superior onde adultos obtêm diplomas universitários resultante de educação a distância e seminários intensivos.

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