Durante o século XX, na
Europa, a gravura é uma arte feita por pintores, quase sempre relegada a um
segundo plano (apesar de estampas de excelente qualidade). No Brasil é
diferente. A gravura é feita por gravadores. Temos pintores que gravam, mas a
maior parte de nossa produção é feita por artistas que se dedicam
exclusivamente à gravura. Para a gravura os mais importantes artistas são
Oswaldo Goeldi e Lívio Abramo e não Di Cavalcanti, Tarsila ou Portinari.
O Brasil não vive a decadência da gravura
causada pela fotografia que aconteceu na Europa no fim do século XIX. No
Brasil, a gravura artística chega depois da fotografia. Ela chega liberta de
qualquer caráter reprodutivo e de cópia. Ignoramos a rigidez do buril e
passamos direto para as nuances da água forte e para a matriz xilográfica. A
nossa raiz é europeia por conta dos artistas que aqui chegam: Carlos Oswald,
Oswaldo Goeldi e Lasar Segall com uma produção gráfica forte e independente da
pintura.
A tradição brasileira do gravar passa pela
educação. O ensino da gravura é extremamente pessoal, feito no ateliê, no
estúdio e em cursos livres de museus onde os artistas estrangeiros de alto
perfeccionismo técnico ensinavam e formavam novos artistas e novos professores
em um movimento contínuo de saberes.
A gravura no Brasil
A imprensa, a
impressão e a gravação de imagens eram proibidas no Brasil colônia até a vinda
de Dom João VI e a família real em 1808 e a fundação da Imprensa Régia. As
poucas tentativas realizadas foram duramente punidas. Durante a Missão Francesa
a vinda do gravador Simon Pradier não produz frutos e ele parte após dois anos
sem deixar discípulos.
A produção
gráfica artística no século XIX é incipiente. Não há, portanto, uma produção significativa
de gravura no Brasil até o início do século XX. A gravura artística conceituada
como obra independente e não de reprodução surge por volta de 1913 com a
chegada do italiano Carlos Oswald, mas irá se firmar somente por volta da
década de 30.
É interessante notar, como dizem Cláudio
Mubarac e Evandro Carlos Jardim no catálogo da exposição “Gravadores
Brasileiros Contemporâneos”, que este desenvolvimento se dá como um fenômeno
pós-fotográfico e após todos os modernismos fundadores do século já terem sido
destilados e inoculados na história geral da arte (referindo-se à Europa e suas
vanguardas).
Carlos Oswald
A origem da gravura no Brasil se dá,
portanto, em um meio vazio de tradições iconográficas e de práticas gráficas
que se reflete, na produção atual, em uma visão indagativa, intuitiva, por
vezes, ingênua e que ainda tem como exemplo a importante obra de seus pioneiros
históricos: Lasar Segall e Oswaldo Goeldi, artistas estrangeiros de vertente
expressionista, e Carlos Oswald e Lívio Abramo, cujas atividades educacionais
ajudaram a fundar as bases de uma gravura brasileira.
Carlos Oswald situa a gravura como a
verdadeira arte do século porque é uma arte democrática, pelo seu poder de
síntese, por seu impacto junto ao público que se surpreende com as suas
técnicas como água forte, maneira negra, pelo processo criativo que permanece
na imagem final e por este léxico que é como uma alquimia que também seduz os
artistas. Para ele “a gravura é a mais espiritual das artes porque se baseia em
elementos abstratos, o ponto e a linha cuja imaterialidade também exprime as
intensidades e qualidades dos estados de alma artísticos.”
Lasar Segall chega no Brasil como um
artista completo, com sua poética formada na Alemanha. Ele utiliza a economia
de meios da gravura para acentuar o drama da existência humana em um mundo
hostil e turbulento criando imagens fortes e pulsantes.
Oswaldo Goeldi não se deixa contagiar pela
cor e “alegria” dos trópicos. Sua obra é permeada pela solidão, pelo abandono,
pela decadência urbana. Os personagens e a paisagem se fundem e a cor aparece
enquanto forma gravada e não de forma decorativa ou ilustrativa. É interessante
notar que estas imagens sombrias eram contemporâneas das pinturas
antropofágicas de Tarsila do Amaral com sua sofisticada versão caipira do
modernismo de Léger.
Oswaldo Goeldi
Lívio Abramo captura estas influências e de forma altamente
pessoal as traduz em xilogravuras que passeiam pelas formas de Tarsila,
pelo expressionismo alemão e que, ao transcender estas influências e unir
abstração e figuração, cria paisagens de sofisticadas geometrias e ritmos de
natureza construtiva.
Os modernistas Anita Malfatti e Di
Cavalcanti também tinham uma obra gráfica, mas a gravura não participa das
exposições da Semana de 22. Anita, no entanto,
mostra algumas gravuras em sua polêmica exposição de 1917. É possível que desde
então os artistas gravadores (excetuando-se Segall) já formavam um grupo à
parte já que não participaram da Semana, nem dos bailes da SPAM.
Nos anos 30 e 40 a produção destes
pioneiros divulgada em exposições e cursos irá influenciar toda uma gama de
jovens artistas como Renina Katz, Fayga Ostrower e Anna Letycia.
Renina Katz.
A gravura sempre esteve
ligada com a palavra escrita e com a ilustração. Os primeiros livros ou
incunábulos eram gravuras. Muitos artistas ilustram livros, jornais e revistas
com gravuras. A literatura de cordel casa imagem e texto de forma exemplar. Goeldi
ilustra “Cobra Norato” de Raul Bopp, Lívio Abramo ilustra “Pelos Sertões” de
Afonso Arinos, Poty ilustra Jorge Amado, Graciliano Ramos, Euclides da Cunha e
Machado de Assis e Leskoschek ilustra Dostoievski.
Na gravura e na literatura há um
posicionamento político baseado na idéia de reprodução da imagem e do texto, da
difusão do conhecimento, da educação, da arte como algo que faz parte do
cotidiano, da arte que fala sobre o homem e sobre a realidade do país
(especialmente quando se pensa em um país pouco letrado e com grande percentual
de analfabetos como o Brasil).
Carlos Scliar
Nos anos 50 a gravura se faz política, uma
“arte da luta”. Vemos o surgimento dos “Clubes de Gravura” do Rio Grande do Sul
(influenciados pelos Talleres de Grabado Mexicanos). Reunindo artistas como
Carlos Scliar, Danúbio Gonçalves, Vasco Prado e Glênio Bianchetti entre outros.
Nestas grandes tiragens em linóleo faz-se uma crítica ao capitalismo e
valoriza-se o trabalhador rural e suas raízes gaúchas.
Renina Katz faz suas xilogravuras de
retirantes, operários e favelados (expostas em Veneza). Um realismo socialista
que se utiliza dos pretos e brancos, da contundência da xilogravura para
reforçar a dramaticidade das imagens. O artista se vê em um papel de
provocador, humanista, de ultrapassar os limites do meio artístico e com
envolvimento em questões sociais.
Por outro lado, nos anos 50, a gravura
também adere às correntes abstracionistas. Repete-se na história da gravura o
embate que se dá na história da pintura no Brasil nesta época. A influência das
Bienais e do abstracionismo se refletem nas obras de Fayga Ostrower, Edith
Behring e Ivan Serpa que tem aulas com Friedlander no ateliê de gravura do
MAM-RJ. Um grande número de artistas se forma nesta instituição: Rossini Perez,
Roberto De Lamônica e Anna Letycia entre outros.
Nos anos 60 e 70 a gravura parte para
experimentações. A serigrafia e a litografia começam a ser mais utilizadas e
vistas como técnicas de reprodução de imagens. Artistas como Dionísio Del
Santo, Cláudio Tozzi e Regina Silveira se utilizam destas técnicas para criar.
Meios de reprodução
foto-mecânica como o xerox e o off-set são usados por artistas abertos às
experimentações de linguagem. Por outro lado, nesta época de repressão militar
e de censura os ateliês de gravura são vistos como portos seguros onde se pode
discutir política e traduzi-la em formas visuais de fácil divulgação (por conta
dos novos meios de reprodutibilidade) e de grande impacto visual.
No entanto, estes mesmos meios são usados
de forma negativa nos anos 70 e 80. A reprodução indiscriminada de litografias
e serigrafias cria um excesso de imagens sem qualidade visando atingir um
público novo, sem formação de arte e que acaba por desvalorizar a técnica e a
imagem da gravura como obra de arte com reflexos até os dias de hoje.
Obra de Regina
Silveira
Nos anos 80, na FAAP e na ECA-USP, os
artistas Evandro Carlos Jardim e Regina Silveira em São Paulo e Anna Bella
Geiger no Rio de Janeiro são responsáveis pela formação de um grande número de
artistas (Laurita Salles, Cláudio Mubarac, Marco Buti, Luise Weiss, Solange
Oliveira e outros) que vão se utilizar das linguagens gráficas na sua produção
poética transcendendo as técnicas mais tradicionais, redefinindo parâmetros e o
lugar da gravura nas artes.
Evandro Carlos Jardim
Ao fazer a curadoria das X e XI Mostras de
Gravura de Curitiba (1992 e 1995) Paulo Herkenhoff parte de questões inerentes
à gravura vistas sob uma ótica contemporânea e conceitual da reprodução da
imagem, da idéia de gravação, de incisão, da existência ou não de uma matriz,
da multiplicação da imagem, da transferência de matéria e do uso de matrizes
não tradicionais.
A gravura hoje se coloca como um meio de
representar uma ideia em constante diálogo com outras linguagens se libertando
da ditadura da técnica para renascer como conceito.
O ensino da gravura
Ao pensar no processo de estudo da gravura
no Brasil percebe-se uma característica interessante que o diferencia do ensino
das artes plásticas em geral. O aprendizado da gravura se dá em ateliês
coletivos como o Clube de Gravura de Porto Alegre (1950), Atelier Coletivo de
Recife (1952), ateliê de gravura do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
(1959), o Estúdio Gravura de Lívio Abramo, Maria Bonomi e João Luís Chaves
(1961) e os ainda ativos ateliês do Museu Lasar Segall e do SESC Pompéia em São
Paulo, em escolas como o Liceu de Artes e Ofícios e a Oficina de Artes do Ingá
ou em cursos de museus como o Museu Nacional de Belas Artes e o ateliê Francesc
Domingo do Museu de Arte Contemporânea da USP (1987).
As próprias características da técnica que
pedem prensas grandes e pesadas, bacias de ácido, caixas de breu e outros
equipamentos caros e volumosos levam os artistas a se reunirem em espaços
coletivos onde é possível dividir estes materiais e custos.
É interessante notar que os artistas que
estudam gravura não passam por uma academia oficial, o aprendizado se faz de
maneira informal, de mestre para aprendiz, sem intermediação, no fazer, na
prática. Mesmo nos dias de hoje quando quase todos os artistas cursam faculdade
este processo ainda é verdadeiro.
Gravar pressupõe um conhecimento profundo
da técnica. “Não existem gravadores de fim de semana” dizia Fayga Ostrower. “A
gravura envolve um processo artesanal, um processo lento que envolve várias
etapas e que é necessário dominar”.
A tradição e a força da gravura brasileira
se formam nesta cadeia de ensino, no conhecimento que vem da prática e da
discussão constante entre as partes. Uma tradição alimentada pelas diferentes
gerações e que ainda hoje é mantida viva pelos jovens artistas.
Gaston Bachelard diz em “O Direito de
Sonhar”: “O gravador põe o mundo em andamento, suscita forças que inflam as
forças, provoca forças adormecidas num universo plano”.
Questões da gravura
Seria válido usar a noção de centro e
periferia de Ginszbrug e Castelnuovo para definir as relações entre a gravura e
a pintura? A gravura estaria na periferia da história da arte enquanto a
pintura ocupa o centro e as atenções do mercado e dos historiadores? Sim, mas
ironicamente as inúmeras participações e premiações nas Bienais Internacionais
de São Paulo reforçam a forte presença da gravura no Brasil e com certeza
criaram um ambiente propício às discussões e inquietações relacionadas à
linguagem gráfica.
Por outro lado, em depoimento a Roberto
Pontual citado em texto de Marcos de Lontra Costa no catálogo da mostra
“Poética da Resistência” da coleção de Gilberto Chateubriand de 1994, Renina
Katz diz “Os anos 40 não levam muito em conta as artes gráficas. A pintura e a
escultura prevaleciam como representantes da grande arte. A gravura não tinha
prestígio suficiente. Artistas de peso como Goeldi, Lívio Abramo e Carlos
Oswald não sensibilizavam o público e os colecionadores”.
Hoje, as gravuras de Goeldi e Abramo estão
entre as mais valorizadas do mercado de arte e Goeldi é considerado um dos
grandes artistas brasileiros. De periferia ao centro, os critérios e as
influências se relativizam e são revistos com o tempo. A nossa produção de
gravura é original e traçou um caminho próprio que mantém a sua força.
Svetlana Alpers contrapõe uma história da
pintura holandesa à história oficial da pintura que seria a história da pintura
italiana. Sugere um novo modo de ver a arte e de escrever a sua história,
inserindo outras visões e pontos de vista. Poderíamos nós fazer o mesmo com a
história da gravura no Brasil? É possível traçar uma história paralela ou uma
história da arte brasileira através da gráfica? A nossa gravura se desenvolve
simultaneamente à pintura; o modernismo, a abstração, o conceitual, a arte
pública, a instalação, a arte conceitual – seria interessante investigar se o
que acontece na história oficial da arte brasileira também aconteceu na
história da gravura. Uma possível micro-história da gravura?
Em Goeldi, por exemplo, não há uma busca
intensa pela questão do nacional como no modernismo. Há um projeto pessoal e
independente.
Será que os artistas que faziam gravura não
estavam tão ligados a estas questões? Ou seria a própria técnica, que pressupõe
um artesanato, um fazer, um contato com a matéria um fator de identificação com
o nacional?
Samico e Newton Cavalcanti, por exemplo, se
utilizam da tradição nordestina do cordel, da religiosidade e da fábula
incorporando a cultura popular sem grandes alardes, sem bandeiras, mas com
sofisticação e modernidade.
A produção de gravura no Brasil é enorme e
variada. Da xilogravura de J, Borges às plotagens de grandes dimensões de
Regina Silveira a gravura incorporou os meios de reprodução modernos, mas
manteve também todos os seus procedimentos tradicionais.
Como diz Marco Buti:
“Todas as técnicas são contemporâneas”.
E acrescenta ainda Bernadette Panek:
“A técnica e a linguagem precisam
acompanhar os tempos, as transformações, as necessidades, os questionamentos contemporâneos.
Uma obra é aceita pelo seu valor artístico e não por sua técnica. Caso
contrário torna-se maneirismo e não arte.”
E ainda segundo Debora Wye (curadora do
departamento de gravuras e livros ilustrados do MOMA de Nova Iorque):
“…as fronteiras tradicionais da arte
impressa não são mais tão claras quanto costumavam ser. Na imaginação popular,
a quintessência da gravura pode ser uma delicada água-forte em preto e branco,
porém essa gravura ideal não existe. Os artistas estão continuamente redefinindo
parâmetros.”
O embate com a matéria, a resistência do
material, a violência e a delicadeza que a técnica permite e o processo de
criação, a obra que se constrói enquanto se faz asseguram a permanência da
gravura.
Muitos artistas se utilizam de procedimentos
da gravura como a gravação em si, incisão, impressão, multiplicidade e/ou
transferência de imagens. A gravura hoje é tridimensional e pública. Ela é
cartaz, lambe-lambe, fanzine, ilustração e sticker.
https://arteref.com/gravura/o-papel-da-gravura-no-brasil/
Setembro 14, 2021
Por Eduardo Besen